Ensaio sobre as ruínas

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Thom Andersen aborda um passado constantemente inscrito no presente e que antecipa o futuro dr

Thom Andersen filma a obra de Eduardo Souto de Moura como uma reflexão sobre o papel social da arquitectura

"A arquitectura assombra os meus sonhos", disse Thom Andersen ao público de Vila do Conde. Ficou assim explicado, antes da estreia mundial de Reconversão, porque é que o cineasta norte-americano aceitou o convite do Curtas para fazer um filme sobre arquitectura. E, depois da hora de filme (na noite de quinta-feira), ficou também explicado porque dedicou Reconversão exclusivamente ao trabalho de Souto de Moura. Embora o próprio arquitecto tenha perguntado: "Porque é que ele quer fazer um filme sobre mim?"

Quem conhece os filmes anteriores de Andersen conhece o seu fascínio pelo modo como a cidade e a arquitectura interagem, e pelo modo como o tempo se inscreve nessa relação. Quem conhece a obra de Souto de Moura sabe do seu fascínio por ruínas, pela reapropriação e reinvenção de um espaço onde o tempo deixou a sua usura. Reconversão é, então, um estudo sobre as ruínas como elemento vivo da sociedade, através de uma arquitectura pensada em articulação com a cidade e a paisagem.

Andersen aborda um passado constantemente inscrito no presente e que antecipa o futuro, exemplificado nas camadas que preenchem o trabalho de Souto de Moura no Mercado de Braga. O que começou como "reconversão" de um espaço abandonado em mercado nunca vingou na sua função original, mas a sua progressiva decadência ocorreu enquanto a zona ao seu redor florescia como espaço social, quase como se a ruína fosse uma espécie de "fertilizador" ou "potenciador" que abre novos caminhos ao espaço.

A ideia da arte enquanto reinterpretação de material preexistente estava já muito presente nos anteriores filmes de Andersen; mas, formalmente, Reconversão é mais convencional, um pouco árido, podia tombar no documentário cultural formatado para televisão. O modo como o cineasta se esquiva a isso é simultaneamente elegante e desconfortável: a imagem em movimento a 24 fotogramas por segundo é substituída por sequências de fotografias digitais de alta resolução, criando a ilusão de projecto arquitectural em movimento.

Pelo meio, Andersen deixa algumas observações secas sobre política e música (do kuduro aos GNR) naquele que é, paradoxalmente, o menos especificamente "português" dos quatro filmes dos 20 anos do Curtas. Souto de Moura, entretanto, respondeu à sua própria pergunta: "Percebi que Thom Andersen era alguém com muita seriedade e sabia o que queria." O cineasta usa Portugal e Souto de Moura para reflectir sobre o espaço e o papel que a arquitectura desempenha numa sociedade em crise. Tal como a arquitectura de Souto de Moura, é um filme em camadas, que não se revela numa única visão.

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