Uma hospedaria renovada e uma oração que atravessou séculos

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DANIEL ROCHA

Os agricultores já não virão à Sala do Recibo no próximo dia 29 de Setembro, festa de São Miguel, para pagar as rendas. Os hóspedes não serão recebidos pelo irmão hospedeiro nem terão colchas de damasco nas camas. Tão-pouco se podem ler os livros da que era uma das três ou quatro maiores bibliotecas do país. Nem haverá monges de hábito negro a deslizar pelos claustros ou a cantar no coro. Já não há nada disto no Mosteiro de Tibães. Mas por aqui ainda se respira a história e a monumentalidade desta que foi a casa-mãe dos beneditinos portugueses. E ainda se pode descansar num ambiente tranquilo, embebido pela espiritualidade de outros tempos. Ou rezar com freiras que trabalham no restaurante.

Bom... Há uma pequena desvantagem para um hóspede contemporâneo de Tibães: em séculos passados, quem pedisse alojamento poderia ficar sem pagar, até três dias - depois disso, era-lhe solicitado um pagamento das despesas (ver texto nas páginas anteriores). A hospedaria foi recuperada há dois anos, com um projecto do arquitecto José Carlos dos Santos. O Estado entregou à arquidiocese de Braga a concessão da hospedaria e do restaurante, para cujo serviço, acolhedor, foram convidadas as freiras da Família Missionária Donum Dei (dom de Deus).

Esta congregação missionária, inspirada na tradição das carmelitas contemplativas, nasceu em França, na década de 1960, com a vocação de evangelizar também através do serviço de restaurantes, tendo criado a rede Eau Vive (Água viva). "O próprio Jesus fez muitas coisas à volta da mesa", justificam. De vestidos coloridos e guitarra na mão, cantam no restaurante, à hora de jantar, o Avé Maria, de Lourdes.

Graças aos clientes dos restaurantes, as mais de 600 freiras do instituto em todo o mundo podem ajudar os mais pobres. No Brasil, apoiam crianças de rua, em África têm orfanatos, em Itália ajudam presos e prostitutas, noutros sítios dedicam-se à catequese. Não usam hábito para "poder ir a todos os lugares".

Na recuperação da hospedaria, o refeitório adapta a antiga casa de comer dos hóspedes. Com mesas para 47 ou 54 pessoas, é um espaço despojado, confortável e atraente. Tal como a sala de estar e os quartos, de linhas sóbrias e muito acolhedoras, onde a solidez do antigo e a comodidade do moderno se juntam.

O Mosteiro de São Martinho de Tibães (Braga) oferece-nos um reencontro com a história. Situado numa zona rural e inserido na antiga cerca monacal, a primeira referência conhecida ao edifício data de 1077. Com o tempo, acabaria por se tornar um dos mais importantes mosteiros portugueses.

Dentro da cerca, de 40 hectares (a maior cerca monástica preservada no país), havia o necessário para subsistir: agricultura, floresta para caça e lenha, um moinho, criação de gado, zonas de passeio, meditação e lazer... Tudo organizado, como dizia São Bento, "para que os monges não tivessem saudades de casa". O perfume dos pomares de fruta e a música da água (o Cávado está a uns 400 metros, há uma fonte e um tanque) permitem, ainda hoje, uma rara exaltação dos sentidos.

A extinção das ordens religiosas, em 1834, levaria à venda do edifício e à sua posterior degradação, processo só interrompido pela sua compra, pelo Estado, em 1986. Em 1569, o mosteiro tornara-se casa-mãe dos beneditinos portugueses, tendo sido sujeito a campanhas de reconstrução, ampliação e decoração, que fizeram dele um dos mais importantes conjuntos monásticos portugueses.

É essa monumentalidade e diversidade de estilos, a que se junta a convergência entre o antigo e o contemporâneo, que o hóspede hoje pode encontrar. Desde logo na Sala do Recibo, um dos poucos lugares de contacto entre os monges e o exterior. Aqui, os agricultores pagavam as pensões das terras arrendadas ao mosteiro. Duas tulhas, livros, móveis e o chão de tijolo recordam essa utilização, como explica o historiador Paulo Oliveira, responsável pelo serviço educativo do Mosteiro de Tibães. Hoje, ao lado da recepção, a sala acolhe exposições temporárias.

O mosteiro organiza-se à volta da igreja, dos dois claustros (o do cemitério, junto ao templo, e o do refeitório), dois jardins (o do pátio dos noviços e o do Reverendíssimo, que se pode ver de alguns dos quartos) e dois pátios, para serem vistos de cima: o de São João e o das adegas. Neste último, estavam os palheiros e galinheiros, enquanto à volta do São João ficava a hospedaria dos ilustres. Um passadiço de 1734 permite esconder o pátio das adegas e dava ao de S. João um cenário barroco teatral.

Um pequeno espaço museológico e de livraria colocado na antiga estrebaria mostra peças do quotidiano dos monges, a maqueta do actual mosteiro e um capitel do período visigótico.

Ao lado da igreja está o claustro do cemitério, onde (além da igreja e das capelas) eram também enterrados os monges. Lugar de silêncio, túmulos numerados, os painéis de azulejo que contam a vida de São Bento são um dos elementos notáveis do claustro.

Podemos subir a partir daqui. Em cima está a Caza do Capítulo. É, ainda hoje, um espaço sumptuoso, onde podemos ver a Mesa do Definitório e a cadeira de braços do Reverendíssimo e sentir os perfumes do pomar e dos campos. Aqui eram eleitos os responsáveis da ordem para cada triénio.

Em 1834, a botica do mosteiro, que distribuía remédios aos pobres, foi um dos argumentos usados para defender o não encerramento do mosteiro. Não foi suficiente e a botica foi comprada pelo boticário José Moutinho de Carvalho, de Barcelos, por 26$100 réis.

A biblioteca era outro lugar privilegiado. Em 1834, deveria ter uns 26 mil a 28 mil volumes. Em 1772, Tibães pedira autorização para ter obras proibidas pelo Índex. Voltaire, Rousseau e outros autores do Iluminismo, interditos pela Igreja na época, estavam entre os autores disponíveis. Só o conhecimento das fontes podia levar à sua refutação, argumentavam os monges. A autorização foi concedida, desde que os livros estivessem em armários fechados à chave, para obstar à sua consulta por algum monge sem autorização especial.

Não foi por acaso, explica Paulo Oliveira, que daqui saíram vários monges adeptos do Iluminismo e do liberalismo. E que o primeiro presidente das Cortes liberais foi o beneditino frei Vicente da Soledade, eleito deputado pelo Minho, em 1820.

A fachada da igreja é dominada por imagens de São Bento e Santa Escolástica, patronos dos beneditinos, e uma outra que mostra São Martinho de Tours e o mendigo com quem ele terá, conta a lenda, repartido a capa. Austera por fora, muito rica em talha por dentro, a igreja é um distinto exemplar da arte barroca. Inclui ainda um órgão rocaille, dominado pela representação das três virtudes teologais e de uns sátiros atlantes, que podem ser uma representação do demónio - a língua saía quando se tocava.

Era no coro alto ou na igreja que os monges rezavam os oito ofícios divinos: matinas, laudes, vésperas, completas e as horas intermédias. As misericórdias, a peça da cadeira que servia para o monge se recostar sem se sentar, representam rostos humanos, sátiros e animais, mas com formas fantasiosas.

Hoje, as irmãs Donum Dei já não sobem ao coro alto da igreja para as suas orações - que seguem também o ritmo monástico e nas quais os hóspedes podem participar. A pequena capela está indicada, no corredor da hospedaria, por um crucifixo do Senhor dos Milagres e Maria Madalena aos seus pés.

De manhã, na oração de Laudes, a música dos cânticos confunde-se com o canto dos pássaros do lado de fora. A luz é coada suavemente pela janela, com o sol a carregar ainda mais o amarelo das paredes. "Exaltai o Senhor, nosso Deus, tu és o meu Deus, procuro-te desde a aurora", rezam as cinco freiras. Rosalie Valefakáaga, que toca guitarra, Theodora Tofeila e Lucie Valugofulu vêm da Polinésia Francesa, Francisca Moreano vem do Peru, Adelaide Hien e Christine Ouedraogo do Burkina Faso.

Ao fim do dia, na oração de vésperas, rezam ainda: "Bem eu sei a fonte que mana e corre/ Embora seja noite." Já não há as vozes graves dos monges beneditinos a cantar, mas a mesma oração atravessou os séculos.

A Fugas agradece a Isabel Paiva e à Hospedaria do Mosteiro de Tibães o apoio concedido

Dia 21 de Julho:

Mosteiro de Singeverga

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