A crise na Europa está a afectar os doentes com cancro

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No Reino Unido, transfere-se dinheiro de doentes internados a morrer "para prevenção e diagnóstico precoce" daniel rocha

Especialistas discutem efeitos de austeridade na doença que é a segunda causa de morte na UE. Na Grécia, doentes ficaram sem medicamentos por causa das dívidas do Governo. Em Itália, faltam médicos

Estão quase 35º de temperatura em Roma mas a grega Kathi Apostolidis não despe o casaco branco que destoa do resto que tem vestido. É que onde quer que vá quer que reparem no que tem pintado nas costas: duas figuras jogam poker, a mulher tem aspecto magro e desanimado e já pousou as cartas, o homem de gravata mantém as cartas na mão e vê-se que aposta com medicamentos.

Kathi Apostolidis, sobrevivente de cancro da mama de 65 anos, quer mostrar o efeito que a crise está a ter. Ali está retratada "a recusa" dos laboratórios em fornecer medicamentos oncológicos enquanto o Ministério da Saúde da Grécia não pagasse as dívidas em atraso, explica esta doente-activista, uma das participantes num seminário organizado pela European School of Oncology, em Itália, que perguntava: "Será que a Europa vai conseguir lidar com o fardo crescente do cancro?"

O cancro é a segunda causa de morte na União Europeia (representa 29% das mortes nos homens e 22% nas mulheres), mas espera-se que o seu peso vá aumentar com o envelhecimento da população.

"Não gosto de me queixar", avisa Cora Sternberg, directora de Oncologia Médica no Hospital San Camillo-Forlanini, em Roma, mas diz que no seu hospital "há doentes a esperar um mês para uma TAC, os tempos de espera para cirurgia e radioterapia também aumentaram". Esta, diz, é uma consequência directa da crise e de o facto de estar impossibilitada de contratar médicos e de substituir os que se reformam. "Não contratar é uma prioridade errada."

"O orçamento para a saúde está congelado, pelo menos não desceu", ironiza Mike Richards, coordenador nacional para a área do cancro no Reino Unido, o que significa que, em vez de pensar em novas medidas para combater a doença, "no actual clima financeiro" tudo o que se pode fazer é realocar verbas. "Hoje cada medida que propomos tem que ser acompanhada de estudos com cálculos de custo-benefício."

"Estamos a transferir dinheiro de doentes internados que estão francamente a morrer para prevenção e diagnóstico precoce." Um dos problemas do país continua a ser o diagnóstico tardio, um quarto dos doentes só são descobertos nas urgências e, portanto, já têm sintomas evidentes da doença, refere.

Beneficiar a poupar

Como responsável nacional aponta uma área onde descobriu potencial de poupança e que beneficia o doente, a aposta em cirurgias laparoscópicas. Trata-se de uma técnica cirúrgica minimamente invasiva, realizada com auxílio de uma vídeo-câmara e de dois ou três instrumentos cirúrgicos introduzidos através de pequenos orifícios feitos na pele.

Criou um programa de treino em cirurgia laparascópica para os cirurgiões que operam o cancro: com este tipo de operação "o doente pode sair do hospital em quatro dias, em vez de ficar internado por dez dias. É bom para o sistema e para o doente." Esta medida foi analisada por economistas de saúde e concluiu-se que "as taxas de complicações hospitalares diminuíram, o que amortizou o custo do treino nacional".

Mas nem tudo passa por verbas: há países que investem a mesma percentagem do PIB na área da oncologia com resultados muito diferentes na sobrevivência de doentes, diz Renée Otter, do Centro do Cancro, em Groningen, na Holanda. A especialista nota que a OCDE diz que as diferenças de taxas de sobrevivência por cancro são atribuíveis apenas em metade aos recursos disponíveis (incluindo tecnologias e medicamentos inovadores), um quarto depende da qualidade da prestação de cuidados e o outro à forma como são coordenadas as estratégias no terreno.

Otter defende ainda que a medida de sucesso "está demasiado centrada nas taxas de sobrevivência. A qualidade de vida não é tida em conta" e isso é notório em opções de tratamento que, muitas vezes, "têm mais em conta a perspectiva do médico" e que, em última análise, não trazem diferenças em termos de impacto na sobrevivência mas na qualidade de vida. E dá um exemplo: por norma o que é oferecido ao doente com cancro da próstata é uma operação, a prostatectomia, que, em muitas situações, tem sequelas em termos de incontinência urinária e impotência sexual, quando, em muitos casos, tratamentos de radioterapia mostram resultados igualmente eficazes. "A escolha deve ser dada ao doente, desde que receba todas a informação sobre as consequências."

Num contexto de contenção questionou-se se os sistemas de saúde ainda podem pagar cuidados paliativos. Richards diz que esta área não pode ser encarada como gasto. Sternberg confirma, sublinhando que doentes "a fazer quimioterapia a três semanas de morrerem é ridículo". A médica nota que estes tratamentos representam gastos supérfluos que nada trazem à qualidade de vida. "Com cuidados paliativos, há estudos que dizem que estes doentes têm mais três meses de vida do que os que não os recebem."

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