Esta noite vai ter mais um segundo

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ENRIC VIVES-RUBIO

Com a diminuição da velocidade de rotação da Terra, os relógios atómicos de todo o mundo precisam de ser acertados periodicamente. Esta noite será o momento de os atrasar um segundo e, assim, haverá um minuto que terá 61 segundos

Se ultimamente se tem sentido cansado, esta noite vai poder dormir mais um segundo. A benesse não é grande, mas já não acontecia desde 2008: vai ser introduzido um segundo nos relógios atómicos de todo o mundo, ao mesmo tempo. Em Portugal, este acerto acontecerá de noite: primeiro nos Açores, ainda este sábado, imediatamente após as 23h59m59s e antes das 00h00m00s. No continente e na Madeira, onde é uma hora a mais do que nos Açores, a introdução do segundo já será na madrugada de domingo, entre as 00h59m59s e as 01h00m00s.

Os segundos intercalares são utilizados desde 1972 para ajustar o tempo universal coordenado às variações de rotação da Terra, que está a abrandar. Desde 1972, essa introdução aconteceu 24 vezes, a que vai agora juntar-se mais uma.

Inicialmente, a escala de tempo universal foi definida com base na duração média da rotação da Terra, em que o segundo correspondia a uma fracção do dia solar médio de 1820. Quando se descobriu a não uniformidade da rotação da Terra, foi necessário procurar uma escala de tempo mais precisa.

A invenção dos relógios atómicos, em 1955, veio dar resposta a esta necessidade: o segundo passou a ser definido em termos do ritmo de oscilação de um átomo de césio, e passou a usar-se a designação de tempo atómico internacional (TAI). O cálculo do TAI é da responsabilidade do Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, em Paris, e feito com base numa rede de mais de 200 relógios atómicos espalhados pelo mundo.

Em 1972, foi então introduzido o tempo universal coordenado (UTC, na sigla inglesa), que é a hora média marcada pela rede de relógios atómicos, tendo a União Internacional de Telecomunicações recomendado que este se mantivesse próximo da escala TAI para assegurar a concordância entre as escalas de tempo física e astronómica. "O problema é que ao longo do tempo a Terra vai rodando mais lentamente, o dia solar é maior, mas o relógio atómico, que é muito preciso, continua a bater a cadência de 1820", explica Rui Agostinho, director do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL). E exemplifica: "Se a 1 de Janeiro o UTC e o tempo solar coincidirem, a 31 de Dezembro desse ano a hora dada pelos relógios atómicos estaria um segundo adiantada." Foi por isso necessário introduzir os chamados segundos intercalares no UTC, para compensar o desfasamento com o tempo solar médio.

"Os segundos intercalares são tipicamente introduzidos em Junho ou Dezembro", esclarece Rui Agostinho. "Quando um segundo intercalar é introduzido a 31 de Dezembro, por exemplo, um computador programado correctamente diz que esse segundo ainda é de 2011, mas uma máquina mal programada diz que o segundo já é de 2012. Isto é muito importante para questões financeiras, porque num segundo de tempo ocorrem milhões e milhões de transacções", conclui.

"O negócio dos investimentos é regido não pelo segundo nem pelo milésimo de segundo, mas sim pelo microssegundo, o que quer dizer que estamos nas mãos do relógio", considera por sua vez Susana Ferreira Silva, directora executiva do Banco Espírito Santo de Investimento. "Por exemplo, como o mercado fecha às 17h35m CET [hora da Europa Central], se porventura algum membro tentar inserir uma ordem no mercado às 17h35m000001s, essa ordem é automaticamente rejeitada."

Mas na última década tem sido debatida uma nova definição para a escala de tempo do planeta, que poderá deixar a hora solar definitivamente no passado. A União Internacional de Telecomunicações, responsável pela definição do UTC, e da qual Portugal é membro, fez uma recomendação em Janeiro deste ano para a supressão dos segundos intercalares. A recomendação não foi, no entanto, acatada e a decisão da supressão dos segundos intercalares ficou adiada para 2015.

É preciso recuar vários anos para entender a necessidade de uma nova definição de tempo para o planeta. Rui Agostinho conta que até ao início do século XIX eram as igrejas que em Portugal faziam as observações da hora solar: "A tradição era que a hora do país estava partida por várias cidades. Eram na realidade horas locais, medidas por observatórios: quando o Sol passava no meridiano era meio-dia."

O problema da utilização das horas locais surgiu com o desenvolvimento das linhas férreas: "Cada linha de caminhos-de-ferro tinha a sua própria hora, não havendo maneira prática de sincronizar as horas umas com as outras; as estações tinham um relógio junto à linha para que os maquinistas pudessem acertar os seus cronómetros pela hora do local", refere Rui Agostinho.

Só em 1878 foi instituída uma única hora legal em Portugal, dada pelo então Real Observatório Astronómico de Lisboa (agora é o OAL), que devia fazer a transmissão telegráfica da hora oficial a vários pontos do país.

Os fusos horários só viriam a ser criados em 1884, na Conferência de Washington, com o meridiano de Greenwich a ser escolhido como fuso zero. "Portugal apenas adoptou estas determinações com a implantação da República", refere Rui Agostinho, "e, apesar de a maior parte do território de Portugal continental estar localizada no fuso -1, foi escolhido o fuso zero para a hora oficial portuguesa, para facilitar as trocas comerciais com a Europa". A mudança do fuso do meridiano de Lisboa para o meridiano de Greenwich deu-se a 1 de Janeiro de 1912: "A hora de Portugal foi então adiantada em 36 minutos e 44 segundos", conclui o director do OAL.

Portugal nunca tentou adoptar o fuso -1, mas foram feitas várias tentativas para adoptar o fuso +1, da Europa Central, ao longo dos anos. As últimas tentativas foram entre 1992 e 1996, no Governo de Cavaco Silva, com o propósito de facilitar os negócios, comunicações e transportes internacionais. Esta mudança gerou um coro de protestos por afectar o ritmo escolar e perturbar o sono, já que no Inverno o Sol só despontava perto das nove da manhã.

"O nosso relógio biológico situa-se no cérebro e dita ritmos circadianos, de aproximadamente 24 horas, que regulam o sono, o apetite e praticamente todos os aspectos da nossa fisiologia", refere Susana Salgado Pires, doutorada em cronobiologia pela Universidade de Oxford. "Mas este ciclo interno precisa de um sinal para se manter alinhado com a rotação da Terra, e esse sinal é a luz solar. Se as actividades humanas forem feitas antes do nascer do Sol, dificilmente o nosso cérebro vai aceitar que é de dia."

Isabel Azevedo, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadora em cronobiologia, refere também a importância dos ritmos circadianos para a saúde: "Os ritmos circadianos são uma adaptação do organismo para antecipar mudanças no ambiente e regular a sua fisiologia. Uma alteração nestes ritmos pode levar a distúrbios cardiovasculares, cancro e envelhecimento."

Ao nível dos negócios financeiros, o problema dos diferentes fusos horários na Europa já é actualmente contornado. "A Euronext [mercado de valores pan-europeu a que Portugal pertence] utiliza a hora CET, o que poderia ser um problema para Portugal, na execução das ordens", refere Susana Ferreira Silva. "O regulamento da Euronext exige por isso que todos os membros usem como hora de mercado o fuso CET. Os corretores financeiros com sede em países sem este fuso, como Portugal, têm sistemas automáticos de conversão: a Euronext converte automaticamente as nossas ordens em hora de mercado."

Com o desenvolvimento da economia e dos mercados financeiros, a precisão da escala de tempo tornou-se cada vez mais urgente. No entanto, a astrónoma argentina Elisa Felicitas Arias, directora do Departamento do Tempo do Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, refere que "desde o ano 2000 tem sido discutido pela União Internacional de Telecomunicações a supressão dos segundos intercalares". E vai ainda mais longe, dizendo: "Apoio totalmente a aprovação da nova definição de UTC, sem segundos intercalares: há um impacto muito negativo na inclusão dos segundos intercalares ao nível da sincronização de redes, navegação por satélite, controlo de tráfego aéreo, mercado bolsista, afectando directamente as actividades humanas."

Elisa Felicitas Arias desvaloriza o impacto negativo que a supressão dos segundos intercalares possa vir a ter no dia-a-dia das pessoas: "Actualmente, a hora solar já difere da hora legal na maior parte dos países, alguns dos quais com diferenças de mais de duas horas. A supressão dos segundos intercalares levaria, ao fim de um século, a uma diferença de apenas um minuto entre as duas escalas, o que é insignificante."

Mas daqui a 4600 milhões de anos, tantos quantos tem agora a Terra, se ainda cá estivermos a rotação do planeta vai abrandar ao ponto de um dia ter então a duração de cerca de 53 dias actuais, explica Rui Agostinho. Ou seja, em vez das actuais 24 horas, um dia terá qualquer coisa como 1272 horas.

Para já, enquanto não chega 2015, quando se decidirá o destino dos segundos intercalares, aguarda-se pelo segundo a mais desta noite. Provavelmente, poucos darão pela diferença.

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