O futebol como coreografia da vida

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Gosto do futebol como jogo, paixão, estratégia, coreografia e vida. Está lá quase tudo

1.Deve um homem resistir ao espírito do tempo? Talvez, mas não em demasia. Hoje apetece-me escrever sobre futebol, esse objecto de paixão estética e devoção fanática. Esta última parte, no meu caso, tem a ver com o Futebol Clube do Porto, minha angústia e minha promessa de felicidade de cada fim-de-semana, e não é agora para aqui chamada. Regressará nos finais de Agosto.

Neste início de Verão, acompanhando o Europeu, encontro o futebol enquanto pureza original. Há muitos anos que leio livros, crónicas jornalísticas, pequenos ensaios sobre tão curioso assunto. O futebol é tão belo enquanto espectáculo sensitivo como na qualidade de representação e divagação. Gosto do futebol como jogo, paixão, estratégia, coreografia e vida. Está lá quase tudo. Não foi, decerto, por acaso que Albert Camus, esse filósofo com um lado solar, afirmou um dia: "Tudo o que eu sei sobre a moral devo-o ao futebol." Frase lapidar e extraordinária. Como uma outra que passo a citar: "Aprendi que a bola nunca vem até nós por onde a esperamos. Isso ajudou-me durante a vida, sobretudo nas grandes cidades onde as pessoas não costumam ser propriamente rectas." Vai ainda mais longe afirmando que "com o futebol aprendeu a ganhar sem se sentir um deus e a perder sem se sentir um lixo". Ele era guarda-redes na equipa da Universidade de Argel, onde então estudava. A sua opção no campo de jogo tinha uma razão de ser: pobre, quase miserável, a sua avó inspeccionava-lhe todos os dias o estado dos sapatos, pelo que ele teve que optar pela posição em que estes menos se desgastavam. Camus, um dos grandes pensadores da liberdade, foi afinal de contas guarda-redes por razões de necessidade. Isso não o impediu de encontrar no futebol os princípios essenciais que fundariam a sua filosofia moral.

Se sei tudo isto, devo-o a um homem, uruguaio, romancista, jornalista, ensaísta, chamado Eduardo Galeano. É verdade que gosto de ler Segurola, Luís Fernando Veríssimo, Jorge Valdano, que me extasio com os textos de Mário Filho, ainda por cima prefaciados por Nelson Rodrigues, mas considero Galeano o mais extraordinário de todos. Escreveu um livro notável intitulado Futebol: Sol e Sombra, felizmente editado em português com prefácio de Jorge Marmelo, jornalista do PÚBLICO, antigo jogador do Ramaldense e escritor de invulgar qualidade. Em Galeano o futebol transmuta-se em epopeia, história, poesia e filosofia.

No domingo passado recordei-me dele ao assistir ao Itália-Inglaterra; bom jogo com empate injusto no fim. A Itália merecia ter ganho. Seguiu-se o prolongamento, perpetuou-se o empate. Chegou-se finalmente à hora do desempate por grandes penalidades. Instante sublime. Há quem entenda que esta é uma forma espúria de determinar um vencedor e proponha mesmo a sua abolição. Quem assim pensa não compreende a essência do futebol. O que se passou no domingo demonstra-o em absoluto.

Já não há mais jogo, só penáltis. O estádio pára. O tempo desaparece. Estamos perante a tirania da geometria pura. De um lado um marcador, de outro um guarda-redes. Esquecemo-nos que são homens, de certa forma deixaram de o ser. Solidão absoluta envolta numa multidão muda e expectante. Não é imaginável uma situação mais cruel. Pura existência individual confrontada com o destino. Peter Handke publicou há uns anos atrás A Angústia do Guarda-Rede Antes do Penalty - e qual será a ansiedade do marcador? Ele sabe que tudo se pode decidir naquele instante, como um animal na floresta ele compreende o sentido daquele silêncio esmagador e não pode ignorar que o mundo se deteve em expectativa.

Qual é no fundo a verdadeira angústia do guarda-redes? Adivinhar a trajectória da bola, identificar-se com a vontade do marcador? Estamos no plano da adivinhação. O guarda-redes, apesar de tudo, remete-se para uma atitude passiva; ao marcador é que se exige tudo, a energia, o talento, a força, a responsabilidade. O guarda-redes, naquele momento, sabe que viverá entre a banalidade e a excepção; o marcador sabe que a alternativa é entre a competência e o desastre. A relação é claramente desigual.

No domingo à noite tudo isso me veio à memória. A Itália tinha jogado melhor, com um pouco mais de audácia teria ganho o jogo, e estava finalmente exposta ao arbítrio do azar, impotente perante os caminhos do destino. Curiosa metáfora de tantas vidas. Contudo, num instante tudo mudou. A Inglaterra começou por levar vantagem devido ao falhanço de um jogador italiano que parece estar em baixo de forma. A injustiça parecia estar prestes a consumar-se. Eis que surge Pirlo com o seu talento e a sua longa experiência. Ele sabe que está só diante do guarda-redes, da baliza, do estádio, da multidão silenciosa, talvez até, e sobretudo, do seu próprio destino. Não opta pela banalidade, recusa um registo burocrático e ousa marcar um pénalti " à Panenka ". Não falha. Aquele golo é muito mais do que um golo. É arte, é paradoxalmente imprevisibilidade e destino. Os ingleses que se seguiram falharam. A Itália ganhou. Dir-se-á que foi feita justiça. Provavelmente foi o génio que triunfou. Seria reconfortante pensar que as duas coisas andam a par. Fiquemos satisfeitos por admitir que por vezes elas não se contrariam. Já não é pouca coisa.

2. Morreu Júlio Montalvão Machado, fundador do PS. Médico, historiador, humanista no sentido mais amplo do conceito, ele representava tudo o que um cidadão deve ser. Culto, provido de carácter, disposto a tudo sacrificar em nome das causas que prosseguia, dotado da humildade dos homens superiores, impôs-se-me como um exemplo a prosseguir. Dir-se-á que já não há homens destes na vida pública. Não é verdade, eles ainda existem, o que estão é afastados da política. É preciso trazê-los de volta.

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