No cérebro, há um conflito entre ter atitudes racistas e ser-se neutro

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A educação e o esforço podem ajudar a lutar contra os estereótipos Charles Platiau/Reteurs (arquivo)

Num dos momentos fortes da Balada de Nova Iorque, uma popular série norte-americana de detectives da década de 1990, Andy Sipowicz, protagonista que vai tendo comportamentos racistas ao longo dos episódios, promete à sua mulher que vai educar o filho ainda bebé de outro modo.

A angústia interna é óbvia: o detective reconhece o seu comportamento, sente que é errado, mas parece que a possibilidade de mudança já só está reservada à próxima geração. Esta situação ficcional pode ilustrar o conflito que o cérebro vive em relação à representação interior de brancos e negros, que cada vez se conhece melhor do ponto de vista neuronal, mas que ainda se sabe pouco para criar formas de luta contra o racismo, diz um artigo publicado nesta quarta-feira na revista Nature Neurosciene.

“Há uma grande componente cultural que molda os estereótipos e os preconceitos que os cidadãos têm sobre certos grupos étnicos. Nos Estados Unidos, os indivíduos são expostos a associações negativas entre alguns grupos étnicos e actos de agressão e intimidação. Esta exposição, ao longo do tempo, infiltra-se nas associações que as pessoas fazem, mesmo que, a nível pessoal, um indivíduo não acredite nesse estereótipo”, disse ao PÚBLICO uma das autoras do artigo, Jennifer Kubota, do Departamento de Psicologia da Universidade de Nova Iorque.

No censos de 2010 dos Estados Unidos, as minorias não brancas aumentaram de 29% para 36% em apenas dez anos, promovendo a mistura entre pessoas de diferentes origens étnicas, mas casos trágicos como o do jovem negro Trayvon Martin, morto a tiro este ano por um vigilante latino-americano, continuam a abalar o país.

A equipa, liderada por Elizabeth Phelps, olhou para os estudos feitos nos últimos 20 anos com pessoas negras e brancas, que analisaram o funcionamento do cérebro através da análise de imagens de ressonância magnética para examinarem como é que categorias sociais relativas a grupos étnicos foram processadas pelos envolvidos nesses estudos.

Uma das regiões do cérebro mais importantes que é activada nestas situações é a da amígdala, muito ligada a emoções como o medo e a hostilidade. As pessoas observadas nestes estudos mostravam uma activação mais forte da amígdala quando viam caras de pessoas de outros grupos étnicos. Nas experiências, as pessoas com a pele branca apresentavam uma maior actividade nas amígdalas quando elas viam fotografias de pessoas de pele negra e, por outro lado, também tinham uma reacção menos evidente na região do cérebro responsável pelo reconhecimento das caras.

Esta dificuldade em reconhecer caras de pessoas diferentes de nós reflecte um falhanço do cérebro em destrinçar indivíduos de outros grupos étnicos, explica o artigo. O resultado, acrescenta o trabalho, é um “efeito de homogeneidade”, em que os indivíduos de outros grupos são vistos como sendo mais parecidos entre si do que as pessoas do nosso próprio grupo. Isto contribui para uma memória fraca dos rostos das pessoas de um outro grupo étnico, o que para os autores conduz uma “avaliação negativa” sobre essas pessoas.

Apesar de o artigo não discutir se o racismo é um processo inato ou adquirido, Jennifer Kubota sublinha que, durante a evolução, os seres humanos podem ter-se adaptado para sentir um desconforto em relação a indivíduos de outros grupos. Mas, os efeitos que esta adaptação tem no comportamento humano “são provavelmente pequenos”, refere a investigadora.

Steven Sherman, psicólogo social da Universidade do Indiana, nos Estados Unidos, e que não esteve envolvido neste estudo, tem investigado como é que criamos estereótipos e defende que pode haver uma base biológica para o racismo, na qual “temos tendência para ‘desumanizar’ os grupos minoritários”, disse numa entrevista ao PÚBLICO em Junho de 2011 (“O nosso cérebro gosta de fabricar preconceitos”). Ou seja, tomamos as características humanas que não são maioritárias como algo negativo. “É preciso educação e esforço”, acrescenta, para lutar contra os estereótipos.

O novo estudo destaca este conflito entre os estereótipos criados pelo cérebro e o esforço em tentar ser-se neutro, uma guerra interior que pode ser exacerbada pela sociedade. “Apesar de a norma cultural enfatizar a igualdade e a justiça, a cultura também está saturada de associações negativas relativas aos negros norte-americanos”, diz o artigo, onde são referidas várias experiências em que há uma activação do córtex cingular anterior de participantes norte-americanos brancos quando vêem caras negras. Esta região do cérebro está ligada ao conflito, e fica mais activa quando os participantes têm atitudes racistas intuitivas, ao mesmo tempo que acreditam conscientemente em direitos igualitários.

Este conflito, em situações extremas, pode ter consequências. “O preconceito étnico é mais provável quando os indivíduos têm menos tempo para reagir, estão distraídos e quando não são motivados para serem imparciais”, explica Jennifer Kubota. Há por isso uma luta interna entre o que se sente e o que se acredita, mesmo que à nossa frente esteja Barack Obama, filho de um negro e de uma branca, mas que é visto como negro pelos brancos.

“Os estereótipos sobre grupos sociais mudam ao longo do tempo. As atitudes em relação aos norte-americanos de origem nipónica mudaram muito nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial”, diz Jennifer Kubota, mostrando que há esperança quando se olha para escalas de tempo maiores que abarcam várias gerações. Mas este desafio de mudança mantém-se quando se quer actuar hoje neste problema social, explica a investigadora, como no caso do detective Sipowicz da Balada de Nova Iorque: “Uma das questões mais importantes é encontrar a melhor maneira de reduzir a influência de associações étnicas negativas, que são indesejadas, no comportamento.”

Versão aumentada do artigo com o mesmo título publicado nesta quarta-feira na edição impressa
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