Canções com portas para o palco

Antes de existirem discos já existiam, e muitos séculos antes, as canções. O que não é novidade para ninguém. Em fins do século XIX vendiam-se em partituras ou em rolos para pianos mecânicos em lojas como as da célebre Tin Pan Alley, em Nova Iorque. Isso antes de começarem a ser gravadas em discos e chegarem até onde todos sabemos. E isso leva-nos a outro assunto: a relação que cada pessoa, ao longo da sua vida, estabelece com múltiplas canções e o papel que cada uma delas acaba por ter no curso das existências humanas. As revistas musicais fazem disso tema quase permanente. A Uncut manteve, até aos primeiros meses deste ano, uma secção chamada My Life in Music, onde músicos de várias idades procuravam, em dez canções, completar o mosaico das suas vidas. Em Fevereiro passado, a cantora Pegi Young escolheu, por exemplo, canções de Otis Redding, Bonnie Raitt, Laura Nyro, Joni Mitchell, Billie Holiday, Neil Young, Johnny Cash, Janis Joplin, Chrissie Hynde com Emmylou Harris e J.J. Cale. Revia-se em todas elas, por diferentes motivos. Já a Mojo de Julho dedica pelo menos duas secções ao tema. Numa delas, o actor Paul Giamatti conta que o primeiro disco que comprou foi o de estreia dos Madness e que, para uma manhã de domingo, escolheria qualquer coisa parecida com Teat for the Tillerman, de Cat Stevens. Na outra secção, fabulosamente intitulada Last Night A Record Changed My Life, o poeta inglês Andrew Motion explica por que é que o disco Music From The Big Pink, dos The Band, mudou a vida dele.

Isto passa-se em várias revistas, variando os protagonistas. Pois em Portugal passa-se agora também em livro. Autor? Sérgio Godinho (SG). Depois do belíssimo álbum Sérgio Godinho e as 40 Ilustrações, a mesma editora, a Abysmo (de João Paulo Cotrim), lançou no mercado Caríssimas 40 Canções. Sérgio Godinho e as Canções dos Outros, onde se republicam, revistas, as crónicas que SG publicou no Expresso ao longo de 2011, ano em que celebrou 40 anos de carreira (e daí a profusão de "quarentas" nestas edições). Ilustrado por Nuno Saraiva, que já participara no álbum das canções ilustradas, o livro mostra as ligações de Sérgio não apenas a canções (que são o pretexto da escrita) mas também a cantores e compositores. E numa escolha ecléctica mas fiel ao gosto pela boa música, há José Afonso, José Mário Branco, Fausto, Amália, Brassens, Brel, Boris Vian, Peggy Lee, Caetano, Aretha, Bob Dylan, Beatles, Stones, Kinks e, entre tantos outros, The Doors. Com People are strange.

E a que portas bateram os Doors em Portugal, nos anos 60, além da de Sérgio Godinho? Por exemplo: à de António Manuel Ribeiro, fundador e vocalista dos UHF. Como ele contou a Rui Pedro Silva, no monumental livro Contigo Torno-me Real, sobre os Doors (Afrontamento, 2008), começou muito novo por Light my fire, descobriu Hello I love you e caiu "definitivamente vidrado" pelo som do grupo com Touch me. "Quando aos 15 anos algo toma assim conta de nós é para toda a vida", diz ele, no tal livro. Depois vieram os UHF, com o som que se lhe conhece, e os Doors ficaram como uma referência, entre as muitas que os músicos sempre têm. Mas que em pequenas coisas não é iludível: o seu CD e DVD Absolutamente ao Vivo, de 2009, remete quase instantaneamente para o título do primeiro registo do género lançado pelos Doors, em 1970: Absolutely Live.

Mas não é por isto que os UHF vêm agora ao assunto. É, sim, por um evento curioso. Já por aqui se disse que uma empresa americana tinha inventado um sistema para permitir que quem vá a um concerto possa, no final, levar o que ouviu em CD para casa: uma máquina permite fazê-lo (sem encores, claro) num tempo recorde e esse processo tem vindo a ser aplicado há anos. Pois agora passa-se o inverso. Assim: compra-se o duplo CD Ao Norte, gravado ao vivo pelos UHF em Fafe, e com ele vem um bilhete para assistir ao lançamento do disco ao vivo em Almada (cidade onde o grupo nasceu, em 1978) já a 30 de Junho. Um concerto levou ao disco que leva a outro concerto, exclusivo (em parceria com as Fnac) para quem compra o disco. Com as voltas que a música dá, é mais uma experiência para se manter viva e saudável. Assim, uma conversa que começa com canções só podia mesmo acabar diante de um palco. Ou de uma boa aparelhagem.

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