Bienal de Veneza 2012: quantos cabem num Mini?

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Comissariar é fazer escolhas, é definir critérios, é gerir o xadrez dos compromissos e das cumplicidades, é responder a favores, e é, em última análise, excluir. É difícil fazê- lo sem ofender, sem magoar, sem irritar.

Muitos leitores já não são do tempo do Passeio dos Alegres de Júlio Isidro e da sua rubrica "Quantos cabem num Mini?" Tratava-se de um exercício de contorcionismo colectivo que tinha por objectivo empacotar o maior número de almas na célebre carroçaria de sir Alec Issigonis. Vem isto a propósito da Representação Portuguesa da 13a Exposição de Arquitectura da Bienal de Veneza 2012, e dos seus 21 autores representados(!). O tema internacional, lançado pelo britânico David Chipperfield, é common ground, numa dupla alusão entre a "partilha de um território" e os "aspectos em comum" de certas práticas profissionais. Com base nesta premissa, a comissária nacional, Inês Lobo, propõe Lisbon Ground (ver www.labiennale.org) como lugar comum para um conjunto de projectos e de práticas. Até aqui tudo bem. Lisboa está, apesar da crise, com enorme pujança turística e os três projectos estruturantes da frente ribeirinha (Museu dos Coches, Jardim da Ribeira das Naus e Terminal de Cruzeiros), com maior ou menor utilidade pública, são um inequívoco testemunho dessa vitalidade. Mas daquilo que poderia ser um eficaz e claro exercício de contenção ao efeito "Mini" foi um ápice: Siza, Alves Costa, Bárbara Rangel, Catarina Mourão, Aires Mateus, Gomes da Silva, Graça Dias, Mendes da Rocha, Ricardo Carvalho, Rui Mendes, Duarte Bello, Gonçalo Byrne, João Nunes, Carlos Ribas, Souto Moura, João Favila, Joana Vilhena, José Adrião, Carrilho da Graça, Manuel Salgado e António Costa. Não cabe mais ninguém. Até o Presidente e o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa estão arrolados como autores, num menu com a eficácia comunicacional de uma lista telefónica. Entretanto, esta espécie de bienal paralela acontece num recôndito e inacessível armazém chamado Fondaco Marcello, que, apesar de dar para o Canal Grande, só se acede por terra com artimanhas de João Feijão.

Inês Lobo já devia conhecer bem os contornos deste efeito na Bienal de 2004, em que ambos os nossos ateliers participaram, numa lógica que remetia então para um confronto geracional (X e Y). Comissariado por Pedro Gadanho e por Luís Tavares Pereira, éramos então 10 equipas, mais 3 ou 4 artistas para compor o obrigatório ramalhete das transdisciplinaridades de Paulo Cunha e Silva. Mérito em grande parte da qualidade da montagem, a exposição Metaflux estava forte e compacta. Numa edição da Bienal particularmente marcada pelos universos da arquitectura digital, recordo-me da exclamação de Vittorio Lampugnani: Finally, architecture...!, a propósito da Representação Portuguesa. Lembro-me também da imensa entourage oficial portuguesa que, convenientemente instalada no Danieli para o que prometia ser uma divertida semana em Veneza, tinha a ubíqua "Teggy" por secretária de estado da cultura. No dia da inauguração, os jovens arquitectos prestimosamente alinhados mostravam as suas acrobacias à jovem estadista. Nem ela, nem o director do Instituto, nem qualquer outro dignatário esboçava a mais leve intenção de comunicar ao mundo. Estávamos em plena Ovibeja. Paralelamente, fui convidado para a inauguração da Representação da Alemanha, pelos arquitectos Sauerbruch Hutton e Hild+K. O convite para um discreto cocktail num palácio a caminho dos Giardini, bem como o respectivo press-release e as confirmações, tinham sido feitos com tal antecedência e eficácia que toda a imprensa internacional parecia estar presente, desde o Guardian, ao Corriere della Sera. O ministro da cultura fez um curto discurso e agradeceu a todos os presentes em nome do seu país, enquanto o comissário descreveu os aspectos mais relevantes da obra dos 2 ateliers representados. Pelo gritante contraste, ocorreu-me então que o "problema português" não era falta de talento, de ideias ou de recursos. Era falta de formalidade. Tudo acontecia (e suponho que irá voltar a acontecer...) como um encontro de velhos amigos. O tão prosaico "Olá, tu por aqui?" da música do Paulo de Carvalho. O jantar no Rialto (Trattoria alla Madonna, obviamente), seguido de copos no Harry's Bar, mas fundamentalmente, uma espécie de Salão Lisboa, em Veneza.

Como ex-comissário, compreendo bem os dilemas de Inês Lobo. Comissariar é fazer escolhas, é definir critérios, é gerir o xadrez dos compromissos e das cumplicidades, é responder a favores, e é, em última análise, excluir. É difícil fazê-lo sem ofender, sem magoar, sem irritar (eu próprio acho que há muito esgotei a quota mínima de sociabilidade). Porém, a estratégia do "Quantos cabem?" - ainda que legitimada pelo habitual discurso da multiplicidade e complexidade poética da cidade - mais parece uma lista de apoiantes à reeleição de Costa. Parece-me que dificilmente será interessante para um palco internacional. No entanto, e ao abrigo do famoso adágio musical: It ain't over till the fat lady sings, desejo o maior sucesso à nossa representação.

Paulo Martins Barata é arquitecto em Doha e Lisboa?

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