2012, ano zero da Cultura

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Nuno Ferreira Santos

Os promotores do documento Cultura e Futuro, uma iniciativa da sociedade civil que questiona a degradação das políticas públicas para a Cultura e pretende constituir-se num fórum de discussão do qual venham a emergir propostas concretas de acção neste domínio, apresentou na terça-feira o seu manifesto no Teatro São Luiz, em Lisboa.

A sessão, que se inciou pouco depois das 18h e que os leitores do PÚBLICO puderam seguir na edição online via streaming, serviu para se fazer o diagnóstico da situação e para se sugerir alguns caminhos, mas não resultou ainda em propostas concretas, salvo a da criação de um grupo de trabalho, com pessoas de vários domínios da actividade cultural, às quais caberá agora ouvir o que têm a dizer os criadores e agentes de cada sector.

Se houve algum consenso entre os oradores da mesa foi o de que o esvaziamento das políticas culturais atingiu já o ponto de puro desrespeito pela Cultura e pelos seus representantes. “Não somos uns parasitas a viver do erário público”, sublinhou o musicólogo Rui Vieira Nery.

“O país deve muito a muitas das pessoas que aqui estão”. E a deputada socialista Inês de Medeiros, que centrou a sua intervenção na necessidade de as políticas culturais serem pensadas a médio e longo prazo, salientou que esse objectivo “não invalida que devamos ser muito veementes na denúncia da situação presente”, marcada, afirmou “pela falta de uma visão estratégica e pela falta de um mínimo de respeito”.

Coube ao director artístico do São Luiz, José Luís Ferreira, abrir a sessão, explicando que o propósito desta iniciativa era o de se conseguir “o consenso possível” na definição de acções que possam contrariar “uma situação que já é destruturante e que se arrica em breve a ser desestruturada”, com “cortes brutais no financiamento das artes performativas e um desinvestimento quase absoluto no património”. 

Entre os objectivos imediatos, elencou a necessidade de se promover “uma articulação de responsabilidades entre poder central e local” no investimento na Cultura, bem como a urgência em se conseguir “uma certa previsibilidade nas relações do Estado com os agentes culturais independentes”. 

O actor e  professor de teatro António Capelo começou por se regozijar pelo facto de uma dicussão sobre Cultura estar a decorrer num espaço municipal, algo que, afirmou, “seria impensável no Porto”, onde vive, e traçou um retrato negro do cenário em que sobrevive o meio teatral portuense, ou não sobrevive, já que, sublinhou, “as condições degradaram-se ao ponto de várias companhias terem já tido de fechar”. 

Quando tudo corre mal

A actriz e deputada do BE Catarina Martins defendeu que “2012 foi um ano zero” para a Cultura, lembrando, entre outros exemplos, que “a rede de museus está parada”, que há “bibliotecas com orçamento zero para aquisições”, que “muitos equipamentos municipais estão em riscos de fechar”, que “o Alto Douro Vinhateiro corre o risco de perder a sua classificação como património da humanidade” e que a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) “não abriu concursos para nada”. E “quanto tudo corre mal”, argumenta, não se trata de um acidente, mas de um propósito”. 

Para a deputada, é urgente desmistificar a ideia de que “a arte pode viver do mercado” e que “a Cultura só serve para o turismo cultural, como um bibelot num expositor”. Reiterando que o Estado tem o dever constitucional de assegurar as condições de criação e fruição cultural, acha que se está a tentar instalar a ideia que não lhe cabe essa responsabilidade, e que isso “é novo e é perigoso”. 

Nuno Artur Silva, fundador das Produções Fictícias, centrou-se na dicussão do servço público de televisão, defendendo que a tutela da TV pública deveria estar na Cultura e criticou o facto de questões como a da televisão digital terrestre e a da privatização de um canal da RTP, que considerou deverem ser “discutidas como um todo”, estarem a ser tratadas separadamente por diferentes tutelas. 
Defendendo que a anunciada privatização “é uma obsessão do ministro Miguel Relvas”, cujas vantagens “ninguém conseguiu provar” e que tem “uma potencialidade destrutiva para todo o frágil sector auduivisual português”, o orador acrescentou não querer sequer comentar a possibilidade de esse canal “poder vir a pertencer a um Estado, e que pode nem ser um Estado democrático”. 

Nuno Artur Silva defendeu ainda que “é crucial que a lei do Cinema seja aprovada”, mas defendeu que, além de se garantir finaciamento para se “fazer filmes em liberdade”, é também “decisivo” que se invista na TV e e no audiovisual contemporâneo que, diz, “é rico, diversificado e vive de muitos ecrãs”. 

Também o realizador João Canijo defendeu a Lei do Cinema, afirmando que esta, ao exigir que as televisões privadas invistam em cinema, ficção e entretenimento nacional, está a apenas a impor-lhes “o que lhes devia ter sido imposto quando foram criadas”, já que, observou, descontado o exemplo italiano da televisão de Berlusconi, Portugal foi o único país que privatizou a TV sem apresentar “um caderno de encargos” às televisões privadas. A Itália serviu-lhe também para lembrar que “o cinema italiano, que foi um dos mais importantes do mundo, morreu quando a RAI, que era a sua grade produtora, foi privatizada”.  

Ponto de não retorno

Inês de Medeiros concorda que a Lei do Cinema “é muito importante” porque “vem salvar uma situação de sufoco”, mas avisa para os riscos de uma aprovação prematura, criticando o facto de a votação global do diploma, no Parlamento, ter sido agendada já para o próximo dia 25. A deputada defende que se está a “reduzir o tempo para uma discussão na especialidade que poderia ser importante”, e sem qualquer vantagem, já que, assegura, “a lei não vai entrar em funcionamento antes do próximo Orçamento de Estado”. 

Medeiros foi a oradora que insistiu mais na importância da componente lesgislativa para as políticas culturais, defendendo 
que, mais do que outros sectores, a Cultura exige “um sustentáculo legislativo” claro e “estruturas sólidas”, até para combater a excessiva “pessoalização” do sector. Não se trata apenas, diz, das alterações provocadas pela eleição de um novo Governo: “quando muda o director de um instituto, muda todo o funcionamento desse instituto”. 

O musicólogo e ex-secretário de Estado da Cultura Rui Vieira Nery rebateu a ideia de que a depressão económica possa ser um argumento razoável para se desinvestir na Cultura, quer pelo escasso significado do sector em termos de contas públicas, quer por defender que a Europa tem na Cultura uma das vias mais prometedoras para conseguir sair da crise que enfrenta. “O problema” sustenta, é a consolidação de “um modelo político que aproveita a crise para impor a sua convicção de que a Cultura, se não for um objecto de compra e venda no mercado, é um desperdício”. Nery acha que “estamos a chegar a um ponto de não retorno” e que,”mesmo admitindo alguma recuperação económica, pode já não ser possível recuperar o que está a ser destruído”. 

Mas as críticas do musicólogo também não pouparam os “pecados” dos próprios meios culturais, como “um certo ódio às estruturas”, vistas como adversárias da “ideia romântica de uma criação cultural na sua forma mais pura”, ou a tese de que “foi bom ter acabado o Ministério da Cultura, porque assim não há dirigismo”. Nery contrapôs que “a ideia de que a liberdade de criação exige um deserto institucional é suicida”  e apelou aos presentes para exercerem “uma militância política mais ampla, porque a questão é política” e os agentes culturais “tem de ser políticos”. 

Política de emergência

Também o programador António Pinto Ribeiro desmontou os pretextos economicistas para a degradação das políticas culturais, afirmando que o sector “pouco contribuiu para a dívida pública” e que “a escolha não é entre investir na Cultura ou manter hospitais e comprar submarinos”. Defendendo que “nos últimos 30 anos se criou um sector cultural que não existia” e, “com um mínimo de recursos”, se produziu “um conjunto vastíssimo de obras”, Pinto Ribeiro lamenta que “a falta de preparação para cargos governativos” dos responsáveis da tutela, “aliada a uma política neo-liberal”, esteja a “destruir todo este capital cultural e simbólico”.  

Partilhando com Rui Viera Nery a convicção de que “é fulcral” que volte a haver um Ministério da Cultura, o programador defende que este deve ter “um gabinete tecnicamente capacitado” e ser capaz de propor “uma política cultural de emergência para os próximos três anos”. 

 A última intervenção coube a Raquel Henriques da Silva, ex-directora do Instuto Português de Museus, que começou por dar uma nota de optimismo, lembrando que “a situação de suborçamentação gravíssima” que o sector enfrenta não impede que “haja gente no terreno, em todas as áreas, que é óptima e que demonstra uma extraordinária capacidade de sobrevivência”. Explicando que não pede “a demissão do secretário de Estado, porque esta equipa é muito má, mas as anteriores foram péssimas”, Raquel Henriques da Silva afirma que o que lhe interessa “é saber como nos vamos organizar para potenciar o excepcional nível de qualidade da criação artísitica que existe no país”. 

As críticas mais veementes da historiadora de arte e museóloga foram para a nova lei orgânica da Direcção-Geral do Património Cultural que, defendeu, “é de um analfabetismo e de uma pesporrência insuportáveis” e “faz recuar a gestão do património e dos museus muito para lá do 25 de Abril”.
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