O cacique Raoni voltou ao Rio de Janeiro: "Eu ainda estou vivo"

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RICARDO MORAES/REUTERS

Tornou-se famoso ao acompanhar Sting pelo mundo. É um dos protagonistas da Cúpula dos Povos, paralela à Rio+20

Erva, árvores, água e gente a correr, a andar, a pedalar: isto é o Aterro do Flamengo, imensa orla verde que nos anos 60 foi criada no Rio de Janeiro, roubando espaço à Baía de Guanabara. O Aterro, como abreviam os cariocas, estende-se ao longo de sete quilómetros entre Botafogo e o aeroporto nacional Santos Dumont, passando pela Marina da Glória. É nessa parte junto à marina que está a acontecer a Cúpula dos Povos, a maior iniciativa paralela à Rio+20. Ou, dizendo de outra forma, a Rio+20 da sociedade civil.

A Cúpula espera receber 20 mil pessoas nas suas várias tendas, e na manhã da inauguração, anteontem, parecia um território indígena desde a berma da estrada, onde um grupo pintava caras e braços quando a repórter saiu do táxi.

"Somos da etnia terena, Pantanal, Matogrosso do Sul", explica Djionedison, um dos índios com pincel na mão. "Viemos de ônibus, acabámos de chegar." Dois dias e duas noites de viagem, ao todo 120 índios. Ainda nem sabem a que tenda devem ir, só assentaram pé no chão. A prioridade é prepararem-se com penas e pinturas.

"Pertencemos ao Movimento Indígena nacional e a gente vai somar as forças, porque lá onde moramos é onde acontecem vários assassinatos de líderes indígenas e o Estado brasileiro não toma providências", diz Djionedison, que já tem o braço pintado com uns losangos negros.

"Este desenho significa animais: sucuris", informa o jovem cacique Paulino, que traz um cocar de penas de arara sobre o seu longo cabelo negro e entrançado. "E este significa a casca da árvore com que fazemos remédios." Toca na cara do índio à sua frente. "Falta a onça, ainda não a pintámos."

Paulino também empunha pincel e latinha. "É tinta de jenipapo", diz. Uma fruta redonda tradicionalmente usada pelos índios para pintar o corpo. "Está morrendo muito índio por brigas de terra. Tem muito desmatamento, nossos rios estão morrendo, os fazendeiros criam gado nas nossas terras."

O desmatamento para criação de gado, especialmente na Amazónia, é um dos grandes debates ambientais no Brasil. "Os conflitos de morte acontecem com o aval do Estado", insiste outro índio, Valdemiro, professor de História. "As pessoas que assassinaram estão aí à solta."

Além de índios terena, esta comitiva inclui guaranis e ofaiés.

Enquanto falamos um helicóptero sobrevoa o Aterro. Uma figura de capa camuflada e máscara de caveira anda debruçada sobre a erva, a catar papéis e lixo vário. "Sou o São Verdão", diz uma voz masculina, quando a repórter lhe pergunta quem é. Porquê a máscara de caveira? "Porque a depradação do meio ambiente nos mata aos poucos. Todo o mundo sabe." Na mão tem uma cartaz a dizer "São Verdão, protector das florestas" e símbolos de futebol. "Faço uma educação ambiental em massa com as torcidas do Rio."

Casa cheia

Avançando pelo Aterro, uma das primeiras tendas chama-se "Religiões, por direitos". Numa tribuna avista-se um muçulmano, um padre e um hindu, mas a plateia não ultrapassa umas 20 pessoas. Noutra tribuna há um grupo de "hare krishnas". Mas a grande concentração de gente é na tenda do lado. Aí, não só as centenas de cadeiras estão lotadas como há uma multidão de pé.

"Isto é uma colectiva do Acampamento Terra Livre", explica o assessor Gustavo Macedo, referindo-se à maior assembleia do Movimento Indígena Brasileiro, que desde 2004 junta cerca de mil líderes índios na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Este ano, Brasília foi substituída pela Cúpula dos Povos por causa da Rio+20, e toda a América Latina foi convidada.

"Estão aqui líderes indígenas de todos os países da Bacia Amazónica, da região Andina, da América Central." Espera-se que atinjam entre 1200 e 1500 participantes. Passam o dia no Aterro mas dormem no Sambódromo, a gigantesca estrutura de betão concebida por Oscar Niemeyer para o desfile das escolas de samba. "Tem tendas lá, e camarotes", diz Gustavo. "Mais de 10 mil pessoas dos movimentos sociais estão a dormir lá."

E qual é a relação entre este movimento e a aldeia indígena Kari-Oca, erguida simbolicamente em Jacarepaguá, junto à sede oficial da Rio+20? Nenhuma. Essa aldeia é uma iniciativa do Governo, ligada aos ministérios. Aqui é só sociedade civil, totalmente autónoma.

"Que respecten la vida, hermanos!", clama o índio da Bolívia que neste momento tem a palavra. Uma plateia de cocares e peles pintadas aplaude com força. Senta-se então um cacique imponente, cocar de penas amarelas e um daqueles lábios inferiores muito esticados por um pratinho.

"É Raoni, cacique do povo caiapó, com quem o Sting andou pelo mundo", esclarece Gustavo. A seu lado está o cacique Megaron, tronco inteiramente pintado. Faz de tradutor de Raoni, que discursa energicamente em língua caiapó: "Temos de estar unidos para lutar contra as coisas que o homem branco faz com nós. Nós, indígenas, temos de ser fortes. Eu não tenho medo, vou lutar, ainda estou vivo." A voz parece um martelo a malhar no ferro. "Sou contra desmatamento, barragem, mineração nas nossas terras", proclama o cacique.

Depois índios vestidos só com penas, peles e palhas fazem uma dança e um canto ritual. Quando terminam, o cacique Raoni fala a alguns jornalistas. Veio do Parque Indígena do Xingu, onde a projectada barragem de Belo Monte motiva protestos ambientalistas, dentro e fora do Brasil. "Será preciso que a Presidente Dilma me mate em frente ao Palácio do Planalto. Aí, somente, vocês poderão construir a barragem de Belo Monte", declarou Raoni, quando a construção ficou decidida.

"Os indígenas vão sofrer, mas não só eles, também os ribeirinhos [populações mestiças que vivem nas margens dos rios amazónicos], e é por isso que estou aqui", diz agora ao PÚBLICO, sempre em língua caiapó, com o cacique Megaron a traduzir.

A toda a volta há centenas de índios e bancas de artesanato pelo chão. A primeira manhã da Cúpula dos Povos é marcadamente indígena.

Mas logo ao lado, juntam-se negros todos vestidos de branco, mães-e-pais-de-santo do Candomblé e do Umbanda, religiões sincréticas de terreiro, que têm em comum os orixás, semi deuses associados à natureza.

Por exemplo, Mãe Beata de Iemanjá (deusa dos mares) veio de Nova Iguaçú, lá na Baixada Fluminense, longínqua periferia do Rio de Janeiro, com a sua roupa toda bordada, até ao turbante. "Orixá é natureza, é água, é pedra, o ar que respiramos, as folhas, o vento", diz, para explicar a contribuição que o Candomblé pode dar à Rio+20. "Sem isso o homem está devastando e o mundo vai-se acabar."

Que vão fazer aqui de concreto? "Rogar aos deuses para que dêem compreensão aos homens. Na Carta 21 que assinámos na Eco 92 [no Rio de Janeiro, há 20 anos] muita coisa ainda não foi vista com carinho."

A Cúpula dos Povos prolonga-se até 23, o dia seguinte ao fim da Rio+20.

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