O som do cinto a estalar nos olhos

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Paulo Pimenta

Em Chaves, atrás dos montes, um professor do secundário, a partir das memórias de juventude, cria um vigoroso testemunho da vida privada de província antes de Portugal entrar na Europa

Manuel António Araújo (n. Rebordelo, Vinhais, 1956), professor de literatura portuguesa e teatro na escola Fernão de Magalhães, em Chaves, lembra-se. Lembra-se da educação dos pais enquanto tortura mental, dos rituais de humilhação com um cinto de couro, de como era namorar uma rapariga sem a conhecer, da febre por sexo vivida ao ar livre. O rapaz que lia Rimbaud é a crónica de uma impossibilidade: como gozar a liberdade sexual quando se é educado a sofrer humilhações? Quando a violência nos faz duvidar se o corpo que temos nos pertence?

O novo romance de Manuel António Araújo é a viagem ao fim da noite de um jovem vindo do campo para a universidade. Incapaz de ter sexo com mulheres, faz um percurso em direcção à mendicidade, ao anulamento de si mesmo, à aparência monstruosa, ao vírus da morte. Mas o autor não regressa apenas a uma herança de dor, isolamento e secretismo. Também celebra uma sensibilidade campesina. Quantos conhecem ainda o sentido de palavras como "turinas", "lapantim" e "rebusco"? Ou se lembram de alguém a dizer "tudo ficou em flor"? À semelhançade um canavial vergado pelo vento numa praia de Buarcos ("sacudia-lhes a poeirados carros e da areia, quase as esgaçava"), a escrita de Manuel António Araújo é instável e temperamental. Uma poética de sensibilidade pícara, que enfrenta a inclemência de acontecimentos devastadores e nos devolve a um mundo fechado do qual tanto herdámos e já pouco vamos sabendo.

A homossexualidade de Eduardo não é um tema do narrador nem do livro, mas é sugerida por Jeanne, a turista sexual, e pelos pais de Eduardo (cujas desconfianças aumentam a partir da carta que Eduardo recebe de um amigo, que lhe oferece dinheiro para comprar cigarros). Qual a importância que o tema teve na construção da personagem?

Em rigor a homossexualidade de Eduardo não existe. Há sugestões por causa da ignorância radical dos pais em termos da psicologia humana. Para o pai tudo o que fosse um desvio à norma do filho significava que ele seria homossexual. Jeanne é ambígua. É a sinédoque das mulheres estrangeiras que na década de 80 frequentavam a Figueira no Verão. Comporta-se com a personagem com benevolência e compreensão e [para ela a incapacidade de Eduardo ter sexo com ela] tanto pode dever-se à homossexualidade como à impotência. Cabe ao leitor decidir.

Quando nasceu Eduardo Pavorosa?

Nasceu no momento em que um pai fez estalar o cinto nos olhos do filho. É uma imagem que guardo. Quando me sentei para escrever e me recordei da cena, nasceu Eduardo.

Os pais de Eduardo comportam-se como psicopatas. A carta que o filho haverá de escrever à mãe, a dar-lhe os parabéns, denuncia a impossibilidade de expressar sentimentos a alguém que não os tem. Como é que chegou a esta encarnação do mal?

O comportamento dos pais de Eduardo é ampliado e hipercodificado pela ficção. Havia muitos pais assim; não significava que tivessem personalidades de psicopata, embora a sua ignorância na educação dos filhos os fizesse agir duma maneira brutal. Havia pais secos em termos de expressão de sentimentos, e a amplitude que a ditadura dava às famílias no que concerne à educação dos filhos permitia e aconselhava que o carinho não fosse muito explícito. Até ao 25 de Abril, a concepção da infância era a mesma do século XVII, ou seja: as crianças são más e ignorantes, o adulto é que é bom e sábio, cabe-lhe ensinar as crianças. A máxima dos moralistas dessa época em relação à infância (não pecar, fazer o bem e ser austero) é hiperbolizada na educação, pese embora o grito de revolta de Rousseau. Os pais de Eduardo são legítimos herdeiros dessa educação que teve em moralistas como Locke a expressão máxima do ponto de vista teórico.

O sexo era predominante no livro anterior, A Aldeia das mulheres. Agora dá-se um apocalypse now sexual. Como foi para si a puberdade?

Foi feita de proibições e de medos. A ideia de que a masturbação era um acto nefando, do ponto de vista da Igreja, angustiava-me porque gostava muito de o fazer. A minha adolescência transportou as angústias púberes que ecoavam na minha consciência dividida entre o Bem e o Mal, numa aldeia transmontana e também num colégio religioso. Ao nível da sexualidade é um romance quase autobiográfico.

Eduardo vai estudar para Coimbra, mas nem chega a frequentar as aulas. Como foram os seus anos de estudante?

Em Coimbra vivi cinco anos angustiado pelo medo de reprovar. Por isso estudava e isolava-me. Embora me isolasse havia muitas raparigas que gostavam de estar comigo. O meu prazer era convencê-las que gostava delas e depois afastar-me.

Qual foi o seu primeiro contacto com Rimbaud?

No liceu. Na Faculdade aprofundei esse contacto dado ser aluno de Filologia Românica.

É citado um poema de Eugénio de Andrade, cuja sexualidade, mais solar, é oposta à sexualidade saturniana de Eduardo. Parece mais a vontade do autor a pô-lo a ler o poeta de As mãos e os frutos, do que a cultura da personagem sugere...

Há projecções do autor na personagem. Para mim, Eugénio de Andrade é o maior poeta português lírico de sempre.

Eduardo chega a confessar um desejo de suicídio, de provar a própria morte. Ora isso nada tem a ver com o ódio de Rimbaud ("ô, mes petites amoureuses Que je vous hais!"). Ou tem?

Eduardo é uma espécie de Quase do poema de Sá Carneiro. Toca as coisas pela superfície, Não tem que ver com o ódio de Rimbaud, ele apenas o cita, cita versos dele. Por qualquer razão insondável, convence-se que há semelhanças, que há nele um destino a cumprir, rimbaudiano, digamos.

Eduardo chega à Figueira da Foz à boleia de uma cinquentona com um apetite sexual por objectos contundentes e maus cheiros. Como chegou a esta personagem?

Mariza entrou no livro sem que tivesse que ser assim. Foi sendo assim, depravada, e degradada, de moto próprio, digamos. Talvez houvesse alguma influência de osmose por todo o ambiente degradado onde já se encontrava Eduardo.

E Juliana? Os seus olhos são descritos com grande detalhe, mas ela é cega.

Juliana é a sibila. Os olhos são uma coisa que me impressiona imenso, os olhos brancos, a lembrar os olhos dos cegos da literatura de cordel. Todos os cegos tinham um voz tonitruante e uma sabedoria de prenúncios. Os olhos de Juliana, como os olhos de Rute em A Aldeia das Mulheres, são olhos que remetem para uma dimensão esotérica e metafísica da realidade, por causa do seu aspecto estranho: o azul deslavado, quase branco. Há nos olhos de Juliana a mesma semântica iniciática para que remetem os olhos do Jorge de O Nome da Rosa de Eco.

Ainda conheceu a Figueira da Foz que Jorge de Sena retratou em Sinais de Fogo?

Em Sinais de Fogo há preocupações políticas que se discutem nos cafés, na Figueira do meu romance há preocupações donjuanescas, digamos. Não se discute política, embora poucos anos antes tivesse havido a Revolução de Abril. Na Figueira dos anos 80 a juventude vive. As raparigas, por exemplo, casam-se com 17 anos para poderem ser livres e sair da casa dos pais e terem uma garrafa de uísque na discoteca. No tempo da "minha" Figueira não havia sinais, nem resquícios da Figueira de Sena. Era um boom de liberdade, de fruição, não notei tempos de reflexão, era tudo muito intenso e um pouco irresponsável. Só um exemplo. Era dificil entrar-se no Johny Ringo (café na marginal) e não se sair com uma mulher para a serra.

Hesito entre considerar a sua escrita rude, directa ou primária.

Eu escrevo assim, d'emblée. Depois revejo e revejo. Escrevo preocupado com duas coisas: o impacto das palavras e a originalidade. Às vezes dá a ideia que a minha escrita parece incorrecta morfologicamente ou sintaticamente. Sinto que assim o efeito estético é mais conseguido. Mas há rudeza. Só assim entendo a literatura. Que choca, que inquieta, que altera.

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