Turim é uma espécie de Versalhes em versão urbana

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O Balon é outra babilónia que se expande sem plano aparente pelas ruelas estreitas de Borgo Dora

É a cidade do Santo Sudário, da unificação da Itália, da fábrica Fiat e até de Carla Bruni. Para além dos clichés, no entanto, Turim é um lugar fascinante, onde se sucedem palácios barrocos e mercados de rua, shoppings de luxo, balbúrdia multi-étnica e muita arte contemporânea. Luís Maio (texto e fotos)

Cidade plana ou quase, Turim transcende-se a si mesma nas alturas. Começa na Torre Antonelliana, símbolo consagrado, mas nem por isso menos inverosímil da capital do Piemonte. É um edifício colossal, sem dúvida, mas desproporcionado e algo megalómano, que impressiona sobretudo pelo insólito. Leva o nome do arquitecto, Alessandro Antonelli, que começou por desenhar uma sinagoga, que depois converteu (por falta de fundos da comunidade judaica) em edifício camarário. Desde o início da obra, em 1862, nunca parou de crescer, até atingir os 167,5 metros de altura e ser inaugurado em 1889, um ano após a morte do autor.

Contemplada cá de baixo, é uma forma desconjuntada, que destoa no meio dos quarteirões desenhados a régua e esquadro do centro histórico de Turim - ainda mais estranha agora, que está revestida por três bandas LED, correspondendo às cores da bandeira nacional, numa iniciativa destinada a comemorar os 150 anos da unificação. Mas a "verdadeira experiência" da Mole Antonelliana é o miradouro panorâmico, que se encontra suspenso a 85 metros de altura e oferece vistas a 360 graus sobre o miolo urbano. A promessa de calafrios arrasta multidões e origina filas à porta, longas esperas que facilmente escorregam para confraternizações internacionais.

Mais do que as vistas desafogadas, o que as legiões de curiosos procuram são as sensações fortes produzidas pela ascensão até ao mirante, num elevador-foguetão cercado de imagens fantasmagóricas. A gigantesca cúpula da Antonelliana acolhe no seu interior o Museu Nacional do Cinema, um dos melhores da Europa, imbatível no capítulo das máquinas ópticas pré-cinematográficas e das relíquias dos primórdios do cinema italiano. Ora o grande hall do museu está forrado por ecrãs gigantes e há um sem-número de imagens projectadas em caleidoscópio no interior da abóboda, acompanhando a ascensão vertiginosa, numa pequena caixa do elevador transparente, absolutamente sem rede, que leva apenas 59 segundos a galgar na vertical os tais 85 metros de altura.

A fábrica reinventada

Menos popular, mas tão ou mais dramática, é a subida aos telhados do Lingotto, outro lugar espantoso nas alturas de Turim. O Lingotto é a fábrica de automóveis inaugurada pela Fiat, em 1923, um edifício com cinco andares e 500 metros de comprimento, onde as viaturas começavam a ser montadas no piso térreo e saíam prontas no telhado, para enfrentar a pista de testes lá em cima instalada. Maior fábrica do ramo automóvel dos anos 1920, o gigante em betão desenhado por Matté Trucco destacou-se também como uma peça de arquitectura vanguardista da altura, justificando a sua manutenção depois da deslocalização da fábrica para o bairro vizinho de Mirafiori. A sua reestruturação foi confiada a Renzo Piano, nos anos 1980, um processo que ocupou o famoso arquitecto durante as duas décadas seguintes.

Piano manteve o edifício mas converteu-o num centro multiusos, incluindo auditórios, salas de congressos, cinemas, hotéis e um megacentro comercial. Já no telhado veio a instalar a Bolla, cogumelo envidraçado, destinado a reuniões confidenciais, um heliporto e o Scrigno, estrutura em vidro e aço em forma de guarda-jóias. O edifício alienígena funciona como a ponta do icebergue da Pinacoteca de Gianni e Marella Agnelli, que é como quem diz, do casal Fiat.

A colecção permanente só tem 25 peças, mas são todas escolhidas a dedo, incluindo obras de Tiepolo, Canaletto, Matisse e Picasso. Funcionam como um extraordinário contraponto à visão surreal que proporciona o telhado do Lingotto: uma pista de ensaios de carros de meio quilómetro de comprimento no alto de um edifício modernista, agora rematado por duas fantasias arquitectónicas pós-modernas, emolduradas pela muralha de picos cobertos de branco dos Alpes. Entretanto, a paisagem urbana envolvente também foi requalificada para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2006, o que levou à edificação de outras peças de arquitectura emblemáticas da nova Turim, incluindo o pavilhão desportivo Oval e a ponte pedonal sobre as linhas de comboio, ligando o Lingotto à Aldeia Olímpica, construída no antigo Mercado Geral.

Antonelliana e Lingotto têm mais coisas em comum. São ambos edifícios iconográficos com arte lá dentro, mas também símbolos de uma história de sucesso com quase 500 anos. Eleita capital do Ducado de Sabóia, em 1563, capital do reino de Piedmonte-Sardanha, em 1814, Turim foi também a primeira capital da Itália Unificada, em 1865. Veio depois a desempenhar o papel de centro da industrialização de Itália, ganhando o título de Capital Automóvel ou Detroit de Itália, em finais do século XIX, ressurgindo na linha da frente do "milagre económico italiano" dos anos 1950 e 60. A crise decorrente do colapso industrial foi combatida com receitas culturais e turísticas e hoje Turim é a décima cidade mais visitada da península italiana. A estatística volta a jogar a seu favor: é a 78.ª cidade mais rica do planeta e a sua população em diminuição durante décadas voltou a aumentar, ultrapassando agora a fasquia dos 900 mil habitantes (dois milhões na área metropolitana).

Chique e pitoresca

A entrada no segundo milénio e os jogos de 2006 foram oportunidades para Turim se renovar e munir de novos equipamentos, incluindo a Igreja Sem Rosto de Mario Botta, o Palácio dos Desportos de Arata Isozaki e a supracitada Pinacoteca com assinatura de Renzo Piano. São peças de arquitectura extraordinária e seguros enriquecimentos do património construído no Norte de Itália. Não chegaram, porém, para transfigurar uma cidade que no essencial persiste igual ao que era na sua principal época de florescimento, os séculos XVII e XVIII - os mesmos do apogeu da Casa de Sabóia e da corte subalpina.

O que na Idade Média era apenas uma aldeia foi então praticamente desenhada de raiz segundo o ideário Barroco, italiano em parte, mas sobretudo francês. Daí uma cidade de uma geometria majestosa, dominada por longas avenidas cruzadas em praças monumentais, sumptuosos palácios, grandiosas igrejas e esplêndidos jardins. Turim foi projectada como espécie de Versalhes em versão urbana, graças ao génio de arquitectos como Carlo de Amedeo di Castellamonte, Guarino Guarini e Filippo Juvarra - este último, um desenhador de cenários de teatro e de ópera de origem siciliana, a quem também se deve o nosso Palácio de Mafra.

O centro histórico de Turim é assim dominado por um sortido de palácios destinados a consagrar e exibir poder, onde sobressaem o Palácio Real (residência oficial dos Sabóia), o Madama (o das damas reais), o Carignano (primeiro parlamento italiano) e o Chiablese (o dos príncipes herdeiros). Estes centros do poder foram depois suplementados por "casas de prazer" disseminadas em redor da antiga cidade amuralhada, nomeadamente residências de veraneio e de caça, igualmente barrocas, mas menos severas e mais fantasistas. É a chamada "Coroa das Delícias", hoje classificada como património UNESCO.

Do plano barroco derivam igualmente as galerias de arcadas, que se alongam por quarteirões a fio nas avenidas principais. É o caso por excelência da Via Po, avenida rasgada em 1673, para ligar o centro antigo da cidade ao rio, em cujas galerias de arcadas foram abrindo tascas e pequenos negócios. Hoje são mais antiquários, alfarrabistas, pasteleiros e sobretudo chocolateiros, uma das grandes tradições locais. Em finais do século XIX surgiram passagens comerciais cobertas de ferro e de vidro, de novo à moda francesa, como a Galeria Subalpina, onde agora se encontram algumas das lojas mais antigas e prestigiadas da cidade.

As galerias prolongam-se ou desembocam em praças e nenhuma cidade tem tantas, tão bonitas. O fascínio deriva da arquitectura de época, mas também da ocupação actual e as principais praças de Turim estão agora consteladas de restaurantes, bares e cafés, muitos com esplanadas até meio da rua. É outro atractivo maior de Turim: uma cidade que na maior parte permanece igual ao que era no auge do barroco, mas cosmopolita e hedonista ao estilo actual, onde inclusive é ostensivo um certo bohemian chic, de novo muito francês. É o perfume refinado que se exala nos 750 metros de arcadas da Via Roma, maior concentração de lojas de luxo da cidade, ou nas esplanadas floridas da Piazza Vittorio Veneto, nas quais a nata de Turim abanca ao fim da tarde para tomar o aperitivo.

Esta Turim chique e afrancesada tem, porém, o seu negativo na antiga fronteira norte da cidade, que é hoje mais italiana e ao mesmo tempo mais multiétnico. Aí se encontrava a Porta Palazzo, convertida num mercado de frutas e vegetais desde que as muralhas da cidade vieram abaixo, em 1820. Hoje reclama o título de maior mercado a céu aberto da Europa. É, facto, um mercado gigante, tão barulhento, transbordante e caótico quanto o são os seus homólogos do Sul de Itália. As bancas são montadas todas as manhãs da semana e ao domingo serve de lugar de encontro dos emigrantes magrebinos, também em grande número no contíguo Balon, a feira da ladra local (aos sábados).

O Balon é outra babilónia que se expande sem plano aparente pelas ruelas estreitas de Borgo Dora. O bairro sempre foi popular e era já uma zona de fábricas de tecidos na Idade Média, vindo depois acolher antiquários e ferro-velho, vocação que a presente feira de algum modo condensa. Entretanto, a vizinhança foi-se compondo de trattorias piemontesas e restaurantes magrebinos, de enotecas italianas e de pequenas lojas exóticas, confluindo para se tornar no principal centro da noite alternativa de Turim.

Artissima

Os duques de Sabóia investiram não apenas na arquitectura, mas também no recheio e boa parte dos seus palácios são hoje museus de artes aplicadas. O gosto artístico que fomentaram não parou de crescer, ao ponto de Turim reivindicar hoje o título de capital italiana da arte contemporânea. Quer isto dizer que o visitante tem muito mais para ver que a Capela do Santo Sudário e o Museu Egípcio - que, diga-se de passagem, é o segundo maior do mundo. Turim está cheia de museus, fundações e galerias.

Várias instituições têm um duplo atractivo, quando seguem o mesmo guião da Torre Antonelliana - ou seja, são edifícios históricos, que hoje conhecem uma segunda vida, exibindo arte que lhes é muito posterior. Essa combinação tem um exemplo privilegiado no Castello di Rivoli, imponente residência barroca fora de muros (da autoria de Juvarra), que deveria ser a Versalhes dos Sabóia, mas da qual acabou por ser construída apenas um terço. A conversão em museu de arte contemporânea, em 1984, veio explorar essa mesma incompletude, equacionando-a com uma colecção centrada na Arte Povera (corrente originada no Piemonte, nos anos 1960), no Minimalismo e na Videoarte.

Semelhante na troca da função industrial pela artística, a antiga central térmica da fábrica de automóveis Lancia acolhe desde 2005 a obra de Mario Merz, para além de exposições temporárias, enquanto o Palácio Bricherasio é hoje sobretudo ocupado por Outside!, mostra de arte especificamente criada para o local por jovens artistas italianos. Depois há edifícios mais recentes com espaços igualmente importantes dedicados à arte, em particular a Fundação Sandretto Re Rebaudengo, um enorme contentor pós-minimalista, onde decorrem exposições temporárias, entre outras manifestações culturais. A colecção de arte moderna e contemporânea da cidade, integrando mais de 40 mil obras (inclui Cabrita Reis), encontra-se na Galeria de Arte Moderna, e apresenta uma selecção temática do seu acervo, na linha da londrina Tate Modern.

Há um museu de esculturas ao ar livre em construção ao longo da linha férrea mas que já integra obras notáveis de artistas como Marc Didou, Tony Cragg ou Merz. A reputação artística de Turim tem sido reforçada pela promoção de eventos sazonais como a Trienal de Arte Contemporânea, a Bienal internacional da Fotografia e sobretudo a Artissima, a mais importante feira de arte contemporânea de Itália.

A Fugas viajou a convite da TAP, Regione Piemonte, Centro Estero e Turismo Torino

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