Torne-se perito

A cruzada anticomunista de Salazar em África

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O embaixador José Duarte de Jesus acedeu à história da Aginter Press nas pesquisas para o livro Eduardo Mondlane - Um Homem a Abater Daniel Rocha

Nos anos 1960 e 70, a agência noticiosa Aginter Press, sediada em Lisboa, era a fachada perfeita para uma organização de mercenários e espiões da Alemanha, França e Bélgica, que tinham por missão combater o comunismo em África, América Latina e na Europa. A Guerra Secreta de Salazar em África, da autoria do embaixador José Duarte de Jesus, revela as ligações desta rede com a PIDE e a Legião Portuguesa

Durante as pesquisas para o livro que publicou em 2010, Eduardo Mondlane - Um Homem a Abater, o embaixador José Duarte de Jesus apercebeu-se de que nas décadas de 1960 e 70 ficara na sombra uma "história paralela", decorrida em vários países africanos e cujo vértice apontava para Lisboa. As suspeitas do embaixador demorariam ainda algum tempo até serem confirmadas, obrigando a um intenso trabalho de investigação, à pesquisa de fundos documentais, viagens e entrevistas.

Mas os primeiros indícios revelaram-se numa conversa com Marcelino dos Santos, ministro moçambicano pós-independência, e co-fundador da Frelimo. "Em Maputo, falei-lhe na hipótese de Eduardo Mondlane não ter sido morto pela PIDE [morreu em Fevereiro de 1969, ao abrir uma encomenda-bomba], embora esta polícia pudesse ter estado ao corrente do que aconteceu. Na altura do assassinato, tinham estado em Maputo dois membros da extrema-direita que se faziam passar por elementos de um partido da extrema-esquerda suíça. Marcelino dos Santos recordava-os como maoístas e foi então que lhe expliquei que um deles era da OAS [Organisation Armée Secrète, uma organização secreta que, formada em Espanha, reunia exilados franceses, belgas e alemães] e que tinha estado em Maputo. Tudo isto servia muito à PIDE."

A "história paralela" que José Duarte de Jesus verteu para o livro A Guerra Secreta de Salazar em África (D. Quixote) centra-se nas acções de uma organização secreta dedicada a acções de terrorismo, contra-subversão e espionagem, que reunia nazis alemães, exilados do regime de Vichy e colaboracionistas belgas, unidos, no período da Guerra Fria, por um espírito de cruzada anticomunista.

Esta organização escolheu Lisboa para sediar a Aginter Press, uma agência noticiosa que servia de fachada para encobrir operações secretas realizadas em Portugal, outros países europeus, África e também América Latina. A dissimulação foi tão eficaz que somente depois do 25 de Abril foi possível perceber o que era, de facto, a Aginter Press. Porquê a escolha de Portugal? "Foi um país neutro durante a guerra, não era uma grande potência e aqui tudo acontecia de forma tranquila e calma", explica José Duarte de Jesus, durante uma conversa decorrida num dos gabinetes do Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde passou muitas horas a analisar documentação. "Em Portugal, havia muita gente que ajudava sobretudo os exilados de Vichy. De todos os fascistas dos anos 30 e 40, o mais parecido com Salazar era Pétain [líder do Governo francês durante os anos da ocupação nazi]: ambos eram católicos e tinham um low profile."

Não foi apenas a aparente tranquilidade portuguesa que atraiu aquela rede internacional de terroristas. Não só o país era propício para organizar, em diversas zonas do território, reuniões e treinos de mercenários - no Arquivo da Defesa Nacional, o embaixador descobriu uma lista apenas com o número de homens, nacionais e estrangeiros, que participavam nessas iniciativas -, como também existia a cumplicidade e intervenção discretas de Oliveira Salazar e um acordo de colaboração firmado com a PIDE e com a Legião Portuguesa. "Nunca ninguém suspeitou de nada", nota José Duarte de Jesus. E mesmo depois da revolução de 1974, não foi fácil investigar as acções da Aginter: depositado em Caxias, juntamente com o arquivo da PIDE/DGS, o acervo da organização chegou a ser visto por alguns jornalistas, mas acabou por desaparecer. Além da PIDE e da Legião Portuguesa, serviços secretos de outros países tinham estado envolvidos nas operações da Aginter, pelo que ninguém quis deixar rasto, sustenta o autor de A Guerra Secreta de Salazar em África.

Quando José Duarte de Jesus começou a investigar a Aginter e as operações clandestinas realizadas em países africanos, descobriu várias personagens misteriosas. A começar pelo número 1 da agência Yves Felix Marie Guillou, ou Yves Guérin-Sérac, conforme as circunstâncias. Membro da OAS, Yves era um antigo combatente francês que pertencera a uma brigada de pára-quedistas com especial intervenção em operações secretas na Argélia. Em Portugal, teve o apoio de um ex-colaboracionista francês exilado em Lisboa - Jacques Ploncard d"Assac, conhecido pelo seu trabalho na Voz do Ocidente, que, emitindo a partir das instalações da Emissora Nacional, se transformara na "antena portuguesa do movimento fascista europeu", escreve o autor, citando Estrela Serrano. Guérin-Sérac também não deixou qualquer rasto, embora o embaixador tenha tido informações de que está vivo e reside na Madeira ou nos Açores.

Um outro homem-mistério foi Lester, cujas cartas a Salazar, sobre as missões da Aginter em África, estão conservadas no Arquivo Salazar, na Torre do Tombo. É Lester quem comunica ao presidente do Conselho todos os passos dos comandos da Aginter em diversos países africanos, assim como pormenoriza as operações secretas. "É uma relação de informação, mas também de intimidade, que se nota na forma como Lester escreve. E a frequência das cartas é extraordinária", diz o autor, que não conseguiu identificar este informador privado de Salazar.

É através de Lester que o chefe do Governo tem conhecimento das movimentações de operacionais da Aginter na guerra do Biafra e ainda da intervenção na Operação Barbarossa, em Angola. Esta acção terá traduzido a única participação da Aginter numa das antigas colónias portuguesas, em plena Guerra Colonial: um membro da organização deveria reunir um grupo de 300 mercenários que, às ordens de Alexandre Taty, ministro da Defesa do Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE), liderado por Holden Roberto, operariam um golpe no interior do GRAE. O objectivo consistia sobretudo no derrube de Roberto e consequente implosão da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), um dos movimentos independentistas angolanos. Tal como outras acções da Aginter, também esta correu mal, com Taty a abandonar o FNLA em 1965 e a refugiar-se em Cabinda, onde apoiou os portugueses na luta contra o MPLA.

As ligações entre a Aginter e a PIDE chegaram a ser firmadas num acordo escrito, cuja cópia o autor descobriu no Arquivo da Defesa Nacional. No documento, datado de 1966, podia ler-se que as operações da Aginter tinham o apoio financeiro do Ministério da Defesa Nacional, da PIDE e do Ministério dos Negócios Estrangeiros. "O acordo destinava-se à criação de uma megaoperação de espionagem, contra-espionagem e guerra subversiva em vários países de África", lê-se em A Guerra Secreta de Salazar em África. O contrato, que durou até 1969, estipulava a atribuição de um montante anual de um milhão de euros, de acordo com os valores actuais. Em Janeiro de 1969, o ministro dos Negócios Estrangeiros Franco Nogueira ordenou o fim do financiamento, por parte do seu ministério. Mas a PIDE e a Defesa Nacional mantiveram o subsídio. "Franco Nogueira quis distanciar-se porque conhecia a natureza das acções. E em certa altura, quis mesmo expulsar de Portugal os membros da Aginter e os colaboradores da Voz do Ocidente. Encontrei diversa documentação sobre isso no Arquivo da Defesa Nacional", afirma José Duarte de Jesus.

A atitude de Franco Nogueira contrastava com a de Oliveira Salazar, que via na Aginter um "upgrade em relação à PIDE" e interessava-se pela missão anticomunista dos membros da organização. "Salazar apoiava-se em forças que ele sabia que iriam desaparecer. Apostava numa corrente histórica que estava a desaparecer", nota o autor.

Intervenção no 11 de Março

Apesar do acordo com a PIDE, a Aginter tinha relações privilegiadas com os serviços secretos da Legião Portuguesa, cujas movimentações eram bastante mais discretas do que as da polícia política. "Acabei por descobrir que os serviços secretos da Legião funcionavam na mesma localização da Aginter, no Largo do Rato. Na altura, ninguém levava muito a sério a Legião e isso podia ser uma grande vantagem. Os serviços secretos da Legião operavam de uma forma muito discreta", diz o embaixador. Que, num livro anterior, Casablanca. O início do Isolamento Português. Memórias Diplomáticas: Marrocos 1961-1963, conta como conheceu um membro dos serviços da Legião que chegou a Casablanca com uma missão específica: matar o general Humberto Delgado, então refugiado em Marrocos.

A ligação da Aginter aos serviços secretos da Legião terá sido anterior ao acordo firmado com a PIDE. José Duarte de Jesus conta que no segundo atentado contra o Presidente francês Charles de Gaulle, em Setembro de 1961, terão participado dois elementos da OAS, "que tinham sido treinados pela Legião". "Nessa altura foi publicada uma série de artigos contra De Gaulle, no jornal O Século. Isso provocou uma reacção muito violenta da embaixada de França, que comunicou com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Foi a partir daí que Franco Nogueira decidiu que não poderia tolerar mais aquela gente em Portugal. Contudo, nunca foram expulsos e, tanto quanto eu pude averiguar, por oposição de Salazar", explica o autor.

Quando Marcelo Caetano chegou ao poder, em 1968, as movimentações da Aginter desvaneceram-se. "Não encontrei nada", diz José Duarte de Jesus. Nessa época, a organização esteve apenas adormecida. Porque depois do 25 de Abril, elementos da Aginter terão estado envolvidos no projecto da "matança da Páscoa" (uma lista de alvos a abater, todos eles apoiantes do ex-Presidente da República António de Spínola) e ainda na tentativa falhada de golpe militar, liderada por Spínola, que aconteceu a 11 de Março de 1975. "O figurino foi decalcado das acções da Aginter: uma estratégia de contra-subversão, lançando a ideia de que aquelas pessoas iriam ser mortas e criando o terreno necessário para o golpe de 11 de Março", defende o embaixador. O projecto do golpe terá sido feito, segundo o autor, por Guérin-Sérac, o líder da Aginter, que "estará vivo algures nos Açores ou na Madeira". "Estou convencido de que o 11 de Março foi uma tentativa falhada da extrema-direita que o PCP aproveitou para avançar com o seu programa", diz. No livro, a explicação para a intervenção da Aginter no 11 de Março é dada através das ligações de pelo menos dois membros da organização ao Exército de Libertação de Portugal (ELP), então sediado em Madrid. Numa fotografia publicada em finais de Março de 1975 no Diário de Notícias e captada por "agentes sob cobertura" surgem, à mesa de um restaurante em Salamanca, elementos do ELP e "dois estrangeiros com nomes de código: Morgan e Castor". Como José Duarte de Jesus explica no seu livro, Morgan era Guérin-Sérac e Castor um americano, colaborador da Aginter e membro da OACI (Organisation Armée contre le Communisme International).

A apresentação de A Guerra Secreta de Salazar em África será feita pelo comandante Almada Contreiras no próximo dia 31, às 18h30, na Livraria Leya da Buchholz, em Lisboa. Afirma o autor que "toda a situação retratada no livro é actual, porque a confusão é propícia para que uma série de entidades se mexam na sombra e manipulem". E conclui: "A possibilidade de manipular pessoas que não têm nada a perder é muito fácil."

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