“A Casa Encantada” (“Spellbound”), de Alfred Hitchcock (1945)

Filmar é transformar uma coisa em muitas outras que possam ser tomadas por uma unidade, exercício condicionado pelas susceptibilidades das “estrelas”, pelas condições climáticas, pelo carácter de produtores

Poster de “A Casa Encantada”
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Há muitos filmes de Hitchcock que merecem ser vistos e muito para ver em cada um. “A Casa Encantada” é dos da sua fase americana, iniciada com “Rebecca”, essa obra a muitos títulos admirável que já apresentei neste espaço. E, tal como “Rebecca”, tal como todos os constituintes de uma selecção de “filmes sem idade” que se preze, faz muito mais do que apenas resistir a repetidas visões: convida o espectador a que o faça, para, em cada nova observação, lhe dar mais informações sobre a história, sobre as personagens, ou sobre a mestria dos actores a interpretá-las ou a do realizador a transformar tudo naquele resultado, a um tempo extraordinário e familiar.

Tomando uma ideia muito geral da psicologia então em voga, especificamente o seu ramo clínico de tratamento prático de perturbações debilitantes do “cidadão são” a que se refere o texto introdutório do filme, desenvolvida no romance “The House of Dr. Edwardes”, de Frances Beeding (pseudónimo da parceria entre John Palmer e Hilary St George Sanders) e no seu tratamento posterior por Angus MacPhail e no argumento final de Ben Hecht, somos convidados a entrar em Green Manors, uma clínica psiquiátrica no estado do Vermont onde se prepara a substituição do seu director, Dr. Murchison (Leo G. Carroll) por um investigador de renome, autor do recém-editado “Labyrinth of the Guilt Complex”, Dr. Anthony Edwardes (Gregory Peck). E é a chegada do Dr. Edwardes e o seu comportamento peculiar que põem em marcha os fascinantes maquinismos hitchcockianos, fascinantes tanto pela precisão da sua cadência como pela forma como são subitamente emperrados, passando-se do ronronar da relojoaria para os rangidos estridentes de dentes de engrenagens tentando mastigar corpos estranhos que lá caíram.

Filmar é transformar uma coisa em muitas outras que possam ser tomadas por uma unidade, exercício condicionado pelas susceptibilidades das “estrelas”, pelas condições climáticas, pelo carácter de produtores que, como David O. Selznick, se tornavam famosos pelas marcas, maioritariamente benignas, que deixavam nos projectos a que se associavam. Avaliando o resultado final desse trabalho colectivo, saudamos a vitória de Hitchcock sobre todas as adversidades, legando-nos uma obra de arte que perdura, composta por várias outras artes como a iluminação e a fotografia de George Barnes e a composição musical de Miklós Rózsa, a concepção da sequência do sonho do (falso) Dr. Edwardes por nada mais nada menos do que Salvador Dali, um momento único em qualquer filme, como facilmente se imagina e cuja repercussão junto do público Selznick anteviu.

Mas, apesar de todos estes contributos excepcionais, o que seria “A Casa Encantada” sem a beleza de Ingrid Bergman? A princípio retratando uma fria, profissional e humanamente inexperiente Dr.ª Constance Petersen, vemo-la crescer emocionalmente, amadurecer e transformar-se numa mulher ainda mais bela, à medida que se entrega a uma investigação que percorre e constitui toda a história, mas já não uma investigação desinteressada, objectiva, científica, antes uma outra, cheia de novidade, de expressão de sinais de envolvimento pessoal, de partilha de destinos. Daquelas que – sabe quem sabe – só se fazem por amor.

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Apesar de todos os contributos excepcionais, o que seria “A Casa Encantada” sem a beleza de Ingrid Bergman? DR
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