Quase século e meio de história e alicerces para muitos mais anos

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As origens da propriedade de Penafiel quase se perdem no tempo. Começaram a ser escritas por Manuel Pedro Guedes e continuam a alimentar a paixão da família. Entre sequóias e fotografias em tons sépia, António Guedes, actual presidente do conselho de administração, desenrola o novelo desta história vínica de sucesso. Aníbal Rodrigues (texto) e Nelson Garrido (fotos)

A decisão de abandonar uma grande cidade e ir viver e trabalhar para o campo está longe de ser uma tendência actual. Foi isso que o bisavô de António Guedes, Manuel Pedro Guedes, fez em meados do século XIX. Vendeu a casa que tinha no Porto e comprou a Quinta da Aveleda, em Penafiel, cuja origem se perde no tempo. António Guedes, actual presidente do conselho de administração da Aveleda S.A., descreve o bisavô, fundador desta história de sucesso, como um "homem extraordinário, com grande visão". Foi presidente da Câmara de Penafiel, parlamentar em Lisboa e viajou até França para aprender técnicas de reconversão da vinha após a devastação da filoxera.

"Chateou-se com a política", recorda o bisneto, e foi aumentando os domínios da Quinta da Aveleda, comprando novos terrenos através da hipoteca dos que já detinha. Recorrendo a mão-de-obra galega, terraplanou grandes áreas - algo de revolucionário naquela época - para poder plantar vinhas de maior amplidão. Construiu também uma adega, num edifício independente, e não um anexo de uma habitação, como era habitual.

O ano de 1870 é apontado como o do arranque oficial da produção de vinho na Quinta da Aveleda. À época, e ao contrário do que mais tarde viria a robustecer e a notabilizar esta casa, fazia-se vinho tinto. O problema que rapidamente se criou foi o de sobreprodução, que colocava dificuldades de armazenamento. "Na altura, vendia-se uma pipa ou duas para uma tasca", descreve António Guedes. A produção excessiva manteve-se durante décadas, o que levou a família Guedes a abrir uma loja de "mercearia fina", por volta de 1930, na Rua dos Clérigos, no Porto. O objectivo era escoar os vários produtos produzidos na quinta, incluindo também hortícolas.

A fotografia sépia

Os defensores dos comboios sempre disseram que estes levam o desenvolvimento aos lugares por onde passam e foi isso mesmo que aconteceu neste caso. A linha do Douro atravessava e ainda atravessa os vinhedos da Aveleda e, em 1938, um enólogo francês, Eugène Héllisse, que viera a Portugal para efectuar uma experiência com uma empresa do Douro, ficou curioso ao passar por aquelas vinhas. Pediu para se apear ali e foi abordar os donos. Bastou uma conversa, ao almoço, para que o pai de António Guedes contratasse o francês. A entrada deste enólogo marca o arranque da produção de vinhos de qualidade, por oposição aos seus antecessores, que não deveriam ser propriamente referenciais.

O famoso vinho Casal Garcia - nome de uma das zonas da quinta e que soou bem ao seu proprietário de então -, foi lançado em 1939 e já então com um cunho distintivo: a garrafa tinha o tom azulado que ainda hoje a caracteriza e o rótulo foi inspirado num lenço rendado do Minho. Apesar dos seus 73 anos de existência, este vinho continua a ser um verdadeiro todo-o-terreno da Quinta da Aveleda. Existe nas variantes verde, a mais conhecida; rosé, uma alternativa mais recente; tinto, só para exportação; e sparkling (espumante). E a provar que o Casal Garcia está empenhado em aumentar ainda mais a sua já respeitável longevidade e, eventualmente, em chegar a um público mais jovem, a empresa lançou agora uma garrafa de verde em formato mini, vendida num pack de quatro, ideal para quem apenas pretende beber um copo de vinho.

Depois de ter mostrado fotos de Eugène Héllisse, em tons de sépia, de fato completo, boné e sapatos janotas, aos comandos de uma bicicleta, António Guedes exibiu um papel com caracteres datilografados já pouco visíveis. Observando com mais atenção, verifica-se que a empresa vendeu, em 1940, um total de 14.018 garrafas e que, passado pouco tempo, em 1946, talvez porque a II Guerra Mundial já terminara, escoou já 346.380. Uma evolução considerável em poucos anos, mas, ainda assim, nada comparável com os 14 milhões de garrafas vendidas em 2011, sendo que 65% deste total se destinou a exportação. Destes 14 milhões, 9,8 foram de... a resposta não é difícil: isso mesmo, Casal Garcia. A empresa espera, este ano, superar, pela primeira vez, a marca dos 10 milhões deste clássico.

No exterior do edifício principal da quinta, alguns pavões mostram a exuberância das suas caudas abertas em leque para se exibirem às fêmeas e até parece que gostam de ser fotografados. Uma atitude que contrasta com a sobriedade de António Guedes, do seu filho, António Azevedo Guedes, e do sobrinho, Martim Guedes. Estes dois últimos, jovens com pouco mais de 30 anos, fazem parte do conselho de administração da Aveleda S.A. e o entusiasmo com que falam da empresa assemelha-se ao do patriarca. António Azevedo, tal como o pai, tem formação em engenharia agrónoma, e vê-se pela robustez das mãos de ambos que já trabalharam a terra. Por seu turno, Martim conhece os números todos de memória. É o homem da área da Economia.

O padrinho de casamento

Por mais que se procure, é impossível encontrar na Quinta da Aveleda algo que denote mau gosto. Edifícios, matas, jardins, todos são um deleite para os sentidos. Talvez por isso, a quinta é visitada por cerca de 10 mil pessoas/ano. Os jardins estão abertos durante a semana e os turistas podem ainda provar os produtos da casa ou observar zonas mais técnicas, como o engarrafamento. Muitos visitantes são estrangeiros, mas os responsáveis pela empresa ainda não apostam decisivamente no enoturismo. Um dos reconhecimentos que comprovam a valia deste espaço foi o facto de a quinta ter sido galardoada com o prémio internacional Best of Wine Tourism 2011, na categoria de Arquitectura, Parques e Jardins. A componente de enoturismo poderá ser reforçada no futuro, essa possibilidade está a ser estudada, mas António Guedes rejeita, de antemão, multidões, pelo risco de estas poderem desvirtuar o sossego e a beleza do lugar.

"Estou encantada! É fantástico!", dizem duas senhoras, de aspecto distinto, a António Guedes, que troca algumas breves impressões com elas sobre flores e os jardins da Aveleda que contêm sequóias ou áceres, entre muitas outras espécies. Reside lá um mais vulgar eucalipto, mas que é bem invulgar pelas suas dimensões descomunais e já era gigante há 100 anos, como comprova uma foto de 1913 exposta a seu lado. Os pássaros celebram alegremente tanta luxúria verde e a disponibilidade de lagos artificiais que ajudam a refrescar o ambiente. E, como se tudo isto não bastasse, há ainda uma casa belíssima, digna de figurar num filme sobre famílias inglesas antigas e abastadas. É tão vasta e atraente que ainda hoje é utilizada, durante quase todo o ano, por vários ramos e gerações da família Guedes ciosos de manter este privilégio.

Cada vez que passa por um funcionário, António Guedes trata-o pelo nome e saúda-o com afabilidade. "Já fui padrinho de muitos casamentos", relata, bem-disposto. A empresa já teve 190 funcionários, mas hoje conta 163. Racionalizar é um verbo que também se conjuga aqui e "a tendência é para reduzir pessoas". Houve um cumprimento mais sentido, carinhoso, com abraços até, para um senhor que apareceu na quinta, tanto da parte de António Guedes como do seu filho e sobrinho. Era um funcionário, hoje reformado, que ocupou uma posição de destaque na empresa e que venceu a luta contra uma doença muito grave.

António Guedes tem seis irmãos. Um deles detém a Sogrape, empresa que, por volta de 1997, tentou comprar a Aveleda S.A., mas sem sucesso. "Fomos criados nesse sentido, de manter as coisas. Há sempre um ramo [da família] com mais afectividade." Estas frases soaram como se fossem ditas pelos três. Também por volta de 1997, António Guedes iniciou um processo de compra das acções dos seus cinco irmãos e respectivos descendentes, o que concedeu ao banco BPI 20% da empresa. Nota-se pelo tom de António Guedes que a tarefa não foi fácil, mas em 2008 conseguiram pagar tudo e recuperar o controlo total da empresa. Outra época de dificuldades verificou-se no pós-25 de Abril, com a quebra das exportações para as ex-colónias. Mas a capacidade de seduzir outros países já fazia parte do ADN da empresa e hoje as vendas continuam a crescer, apesar da quebra no mercado português de vinhos (6% em 2011 e cerca de 7% este ano). A grande distribuição parece omnipresente em Portugal, mas Martim Guedes lembra que dois terços das vendas internas da Aveleda são para restaurantes e estes estão a fechar a um ritmo superior a duas dezenas/dia.

O pódio das exportações da empresa é constituído por países com elevado poder de compra. Por esta ordem de grandeza: Alemanha, EUA e França. E, para quem pense que o vinho verde é um produto sazonal, mais adequado à época estival, há clientes que compram os produtos da Aveleda durante todo o ano, como o Canadá ou os países nórdicos. Existe também muito a ideia de que Portugal é mais conhecido no estrangeiro pelo vinho do Porto. Não deixa de ser verdade, mas António Guedes lembra que o vinho verde é outro dos grandes embaixadores lusos e, como é feito a partir de castas autóctones, tem a vantagem de ser dificilmente replicável fora de portas.

O vinho e o queijo

A Quinta da Aveleda dispõe de 160 hectares de vinha, mas, ainda assim, só produz 15% dos milhões de quilos de uvas de que a empresa necessita anualmente. Os restantes 85% são comprados fora. Depois há mais 50 hectares de área da Quinta da Aveleda que não são vinha, 10 dos quais jardins. Já quase no fim da visita, António pai e filho mostram a menina dos seus olhos (e o seu apego àquelas terras): 30 hectares de vinha de Alvarinho, cuja uva é delicada e de baixa produção. A aposta nesta casta é para continuar e, a breve trecho, terão 40 hectares. Dentro de dois anos contam dispor de 50 hectares, o que será a maior área de Alvarinho de uma só empresa.

O périplo pela quinta, apesar de apenas ter resumido o que de mais importante há para ver, terminou - já com umas gotas de suor nos caminhantes -, numas arcadas refrescantes, em que pudemos provar os néctares da quinta sentados em bancos de madeira antiga e desenho tipicamente minhoto. Afastámos o calor com uma bela combinação de queijo de vaca, cortado aos cubos, e o frutado Aveleda Alvarinho. Ambos merecedores de encómios. Deve agora dizer-se que a Quinta da Aveleda também produz queijo de vaca, amanteigado e curado, o que representa 5% da facturação da empresa. No ano passado, esta rondou um total de 29 milhões de euros, o que proporcionou um lucro de 2,9 milhões de euros. Acrescente-se que a apelativa loja da quinta, para além dos vinhos e queijos, também tem doces e vários outros produtos.

A Aveleda é quase um compêndio do que o sector empresarial português precisa para se impor e crescer. Apesar do sucesso de que gozam, os Guedes não repousam à sombra das inúmeras e belas árvores que abundam na quinta. O portfolio que oferecem, para além do Casal Garcia, inclui o tinto Charamba, os tintos Follies e os topos de gama tinto e branco Grande Follies, para além da aguardente Adega Velha (esta também já remonta a 1971), mas há novidades.

Recentemente, a empresa apresentou vinhos novos, desenvolvidos pela equipa de enologia e viticultura da casa com o apoio do wine consultant Denis Dubourdieu. A saber: o Aveleda vinho verde e o Aveleda branco do Douro. Nas colheitas selecionadas as novidades são o Quinta da Aveleda Loureiro e Alvarinho e o Aveleda apenas Alvarinho. O quinteto de novos vinhos fecha com o Aveleda Reserva da Família, um Chardonnay feito na Quinta da Aguieira, uma propriedade que a Aveleda detém na região de Águeda.

Fácil é prognosticar, portanto, que a história da Quinta da Aveleda, o maior exportador português de vinhos brancos, se prolongará por muito mais tempo do que o quase século e meio que já conta.

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