Da ética política: o público e o privado

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A questão que se põe é a da fronteira entre o público e o privado, a democracia e o totalitarismo

Por muito que se viva um clima de fim de época e por muito que os valores que fizeram a modernidade ocidental surjam relativizados e até apagados, isso não justifica que em sociedades democráticas se instale uma promiscuidade ética entre o que é a esfera pública e a esfera privada. E isso porque esta promiscuidade transgride as fronteiras da democracia e resvala no totalitarismo.

Esta é a principal questão que se levanta no caso da ameaça de divulgação de factos da vida privada feita pelo ministro Miguel Relvas à jornalista do PÚBLICO Maria José Oliveira, usando como veículo da mensagem a editora de Política do PÚBLICO, Leonete Botelho, e que tem tal dimensão porque envolve o Estado, através da figura de um ministro. A dimensão ética do problema é tal que não se compreende mesmo que o próprio ministro não se tenha já demitido.

Lembremos os factos. A 16 de Maio, Maria José Oliveira envia um questionário ao ministro Miguel Relvas sobre aparentes incongruências contidas nas afirmações que, na véspera, fez na sua audição pela comissão parlamentar de assuntos constitucionais. O ministro não responde ao questionário e telefona a Leonete Botelho, editora de Política. Nesse telefonema diz que vai dar ordens ao Governo para que não sejam dadas notícias sobre a governação ao PÚBLICO e ameaça que divulgará dados da vida privada de Maria José Oliveira através da Net.

A situação, que pode ser até risível de tão ridícula, é de uma enorme gravidade política e é um claro atentado à liberdade de imprensa, consubstanciado em abuso de poder e recurso a métodos totalitaristas. Ao ameaçar proibir a divulgação de informação do Governo, o ministro revela abuso do poder e, ao ameaçar divulgar a vida privada da jornalista, demonstra uma total promiscuidade entre o que é a esfera do público e a esfera do privado no exercício de um cargo político, o que é incompatível com o exercício de um cargo governativo em democracia.

E esta é a questão capital de um caso que tem outros planos de análise, como, por exemplo, se o jornal deveria ou não ter denunciado editorialmente desde a primeira hora a ameaça e o seu teor eticamente promíscuo e antidemocrático - procedimento que devia ter sido seguido, na minha opinião. É importante salientar, contudo, a coragem e a independência demonstrada pela editora de política do PÚBLICO, Leonete Botelho, que, desde o primeiro momento, não se deixou intimidar e não foi conivente com as ameaças do ministro, antes as denunciou imediatamente na redacção do jornal.

Esperam-se as audições em Assembleia da República - não se põe a hipótese sequer que, num Estado democrático, o Parlamento não fiscalize o que se passou neste caso e não tome posição. É claro que, quer numa ameaça quer na outra, se pode considerar que não há nenhum crime. Mas a questão não é sequer a da legalidade da actuação do ministro. É, insisto, uma questão de transparência da vida pública, de separação entre público e privado na gestão do Estado, de não aceitação que um agente do Estado, ministro ou não ministro, resvale em atitudes totalitárias e antidemocráticas. Andou a investigar a vida privada de jornalistas? Com que legitimidade ia divulgar a vida privada de uma pessoa?

Este caso deixa-me tanto mais perplexa quanto ele envolve um ministro que não é nenhum neófito da política e da vida pública. Miguel Relvas é um homem com mais de uma década de experiência pública. É precisamente pela sua experiência e capacidade de gestão política e mediática que ele é, no Governo de Passos Coelho, o responsável pela coordenação política e mediática, o homem-propaganda. E do que é o meu conhecimento profissional de Miguel Relvas - e como jornalista mantenho com ele uma relação profissional há mais de uma década - não consigo perceber como é que o ministro se deixou deslizar para esta situação de quase desespero. O que levou Miguel Relvas a fazer tais ameaças? Como é possível um acto tão grave num actor político que nada tem de ingénuo?

Há uma outra questão que não pode ficar escondida pela nuvem de poeira mediática que este caso está a levantar: precisamente o caso que o provocou. É vital para a democracia portuguesa que sejam esclarecidos todos os contornos do caso de Jorge Silva Carvalho, da sua actuação enquanto agente responsável pelos serviços secretos e o uso que eventualmente fez ou não de informações da esfera pública do mesmo Estado, para servir interesses privados.

Quer na ameaça de Relvas, quer na actuação de Silva Carvalho, a questão que se põe é a da fronteira entre o público e o privado, a democracia e o totalitarismo.

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