Léos Carax descobriu subitamente em Cannes que afinal é amado

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A câmara olha como se Léos fosse enfrentar o seu cemitério pessoal AFP

Léos Carax, o "megalómano" e "autocondescendente", aterra em Cannes com Holy Motors, que comove unanimemente. E arrisca transformar o "mal-amado" no mais bem-amado da competição de 2012

Kylie Minogue suicida-se no local onde Léos Carax há 23 anos se "suicidou", o edifício de La Samaritaine em Paris dominando sobre a Pont Neuf, que nessa altura o realizador reconstituiu para Les Amants du Pont-Neuf, malogrado filme cujo sucesso não deu para sarar as feridas de uma produção catastrófica e contrariar os efeitos de uma lenda galopante de "megalómano" e "autocondescendente" que perdura.

A câmara olha para o edifício, como se Léos se preparasse para enfrentar o seu cemitério pessoal. Como ele diz, o "cinema é uma ilha bonita e nessa ilha há um grande cemitério". Kylie canta Who were we (Carax/Neil Hannon) ao vivo, sem playback, e despenha-se da Samaritaine, um daqueles gestos deste filme cheio de (impossibilidade de) vida, porque já ninguém está a olhar para ver, e quando ninguém está a olhar, voltar a sentir passa a ser uma coisa terminal, e só resta ir até ao fim, da autocondescendência, da paródia, da coragem... e fazer Holy Motors. Que arrisca transformar o "mal-amado" no mais bem-amado da competição de Cannes 2012, euforia perante a qual Alexandre Oscar Dupont de Nemours ("Léos" é anagrama de "Alex" e "Oscar") se faz algo difícil.

"O público? Não sei quem é: um grupo de pessoas que vão morrer daqui a pouco. Não faço filmes públicos, faço filmes privados. Mas convido todos a vê-los", disse em conferência de imprensa. Mas não quer ser visto, não quer ser... amado? Com reticências... "Sim... se houver uma pessoa que gosta de mim fico contente."

O público é um grupo de pessoas que vai morrer, sim. Ou, e essa é uma das primeiras imagens do filme, um grupo de entidades congeladas. Holy Motors fala-nos de um mundo onde já ninguém olha e é olhado. Onde as câmaras de filmar passaram a ser mais pequenas do que as cabeças, onde já não se diz moteur (acção) antes de filmar, mas power - "um falso poder", segundo Carax. E onde os corpos são virtuais.

É aí que Oscar (Denis Lavant, que se chamou Alex em outros filmes de Carax), um actor mas talvez não, saltita de vida em vida, pedinte, homem de família, industrial, assassino - para aí 11 papéis - para sentir, para viver, pela beleza do gesto, e é tudo. É nesse percurso, por exemplo, que, em estado de erecção, vai ser embalado por Eva Mendes, modelo de burqa. Ou que reencontra um fantasma do seu passado, Kylie, num cenário fantasmagórico do passado de Carax, La Samaritaine.

Esse encontro foi, segundo Carax, "uma das mais belas coisas que aconteceram a este filme". De Minogue conhecia o dueto com Nick Cave, em Where the wild roses grow, o que satisfez Kylie, que quis chegar ao realizador como um ecrã em branco. Já a história com Lavant fez-se em anos de cumplicidade, e se o actor não tivesse querido participar em Holy Motors, Carax, disse, sentir-se-ia obrigado a ir falar com Lon Chaney (1883-1930) ou Peter Lorre (1904-1964): uma extinta linhagem expressionista de corpos com a plasticidade de artistas de circo e a leveza da música.

Estamos com ele do princípio ao fim, numa limousine que o leva, conduzido por Edith Scob, de rendez-vous em rendez-vous por Paris. A homens e máquinas destas, segundo Carax, espera o mesmo destino: serem ultrapassados e substituídos por outro state of the art. Por isso acabam as limousines, sarcófagos com rodas, a conversarem sobre o triste fim...

O cinema é como uma ilha com um grande cemitério. Carax rodeia-se dos seus filmes (no final, Edit Scob há-de colocar uma máscara como a de Les Yeux Sans Visage, de Franju), dos seus mortos, como Katerina Golubeva, sua companheira e actriz de Pola X que morreu antes da rodagem de Holy Motors e a quem o filme é dedicado, e dos seus fracassos e lendas. Com um sentido de autoparódia absolutamente tocante. Com uma vontade de provocar e desencadear a cumplicidade de quem se dispõe a olhá-lo - o "público" - que é inédita no seu cinema.

Este sinal de vida na ilha dos mortos é solitário e tocante e fez Alexandre Oscar Dupont de Nemours descobrir, subitamente em Cannes, que é amado.

Hit the road

Hit the road, Walter... mas para onde? Os direitos de On the Road estavam com Francis Ford Coppola, embora o interesse de Hollywood pela Beat Generation seja matéria de que os sonhos são feitos. Jack Kerouac terá começado a sonhar. Depois de ter escrito ao amigo Neal Cassady "I"ll revolutionize American letters and drink champagne with Hollywood starlets" ("hei-de revolucionar as letras americanas e beber champagne com starlets de Hollywood"), terá enviado uma cópia de On The Road a Marlon Brando, por volta de 1957, sugerindo que comprasse os direitos e interpretasse a personagem de Dean Moriarty - o nome de Neal Cassady no livro, que encontra alter-egos para os outros protagonistas da Beat: Sal Paradise para Kerouac, Old Bull Lee para Burroughs, Varlo Marx para Ginsberg...

Foi por alturas de Diários de Che Guevara, de Walter Salles, que Coppola achou que tinha encontrado o seu homem para On The Road. Naquela pré-história do mito Che, Diários de Che Guevara, havia uma busca de ingenuidade, um sentido de incompletude, como se no filme se quisessem imprimir os ritmos de alguém on the road para ser personagem. Em On the Road, a adaptação de Salles (competição), objecto vítreo, não fica impresso qualquer ritmo ou caminhada. O filme colecciona rostos e corpos de acordo com um formato visual de sensualidade que é du jour, mas absolutamente inexpressivo (Garrett Hedlung a fazer de Dean Moriarty, que era Neal Cassady; Sam Riley a fazer de Sal Paradise, que era Jack Kerouac; Kristen Stewart a fazer de Marylou, que era Luanne Henderson, casada aos 15 anos com Cassady; Kirsten Dunst a fazer de Camille, que era Carolyn Cassady, a mãe de dois filhos de Neal - ainda vive, octogenária). Não queremos saber nada deles.

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