O futebolista, esse desconhecido

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Não deve haver espectáculo de massas com pior política de promoção em Portugal. Não só os seus patrões aproveitam todas as oportunidades que se lhes deparam para denegrir a qualidade e a honestidade do produto que os sustenta como os seus principais actores vivem na mais completa penumbra. O futebol “made in Portugal” é um desporto de presidentes e árbitros, com aparições especiais de alguns treinadores. Os jogadores são matéria-prima.

É como se Hollywood apostasse em promover primeiras páginas de revistas com os directores dos estúdios e os legisladores da área do cinema, aprovando uma ou outra intervenção de algum realizador, mas calando e mantendo longe dos olhares do público os actores. Os protagonistas dos jogos de futebol em Portugal são gladiadores, escondidos numa cave durante a semana e lançados na arena em dia de jogo, para gáudio da multidão.

É triste que seja assim. Em Portugal, continua a imperar a ideia feita de que os futebolistas são atrasados mentais, incapazes de alinhavarem um discurso coerente, que fuja aos chavões. E a verdade é que muitos deles fazem exactamente isso nas poucas vezes em que lhes é dada a hipótese de falar. Causa ou efeito? Com as actuais restrições à sua liberdade de expressão, alguém censura uma pessoa por se mostrar defensiva? Alguém arrisca “atravessar-se” em frente às câmaras, dizendo alguma coisa que não o discurso previsível, quando sabe que pagará caro o “desplante”?

Chegados aqui, levantam-se os velhos fantasmas. A quem é que interessa saber o que pensa um futebolista? É assim alguém tão interessante para a vida comum? Dar mais espaço ao futebol nos media? São questões legítimas. Mas há outras que eu gostaria de colocar. Para que é que temos 250 deputados se metade deles não presta para nada? Como é que se admite que os comentadores políticos sejam membros influentes de partidos? Como é que uma protovedeta de telenovelas pode dizer-me, aos 20 anos, algo que me seja útil? Por que é que as caras conhecidas da TV passam a vida a convidar-se uns aos outros para os respectivos programas?

A verdade é que nestes mundos já se percebeu que criar um “star system”, por mais bacoco ou artificial que ele seja, é uma forma eficaz de vender o seu produto, seja ele a política ou o entretenimento audiovisual. Neste cenário, o que faz o futebol? Esconde os seus artistas. Entram em campo com um número e um nome nas costas. O que se sabe deles é o que fazem em campo. Não existem fora do relvado.

Exemplos não faltam. E, às vezes, bem à maneira tuga, precisamos de um olhar de fora para cairmos em nós. Em entrevista a um jornal do seu país, o belga Steven Defour, jogador do FC Porto, disse esta coisa inacreditável sobre a sua relação com o compatriota Alex Witsel, do Benfica: “A direcção [do FC Porto] não me queria ver em imagens com o Witsel. Quando jogámos contra eles disseram-me para o cumprimentar apenas longe das câmaras (...) Há mais de 300km entre Porto e Lisboa, não é fácil encontrar-me com o Axel. Além disso, somos desencorajados a fazê-lo.”

Parece mentira, mas só pode ser verdade. Anderson Polga pode ter feito, no domingo, no Jamor, o seu último jogo pelo Sporting. Alguém sabe se ele gosta de cozido à portuguesa? E Gaitán, o extremo argentino do Benfica que dizem estar a caminho de Inglaterra, como goza as suas folgas? Vai rezar a Fátima, visita museus, lê autores sul-americanos? Se as únicas perguntas a que se permite que respondem têm a ver com o balanço dos jogos, como é que as pessoas querem que eles falem de outras coisas?

Mostrar às pessoas a dimensão humana das figuras públicas só pode ajudar a promover o espectáculo em que actuam. Algumas das melhores frases e histórias de profissionais do futebol divulgadas na imprensa foram resultado de raras sessões públicas, normalmente com crianças. Mais do que um número na camisola, um futebolista é uma pessoa e a incrível popularidade do futebol faz dos seus profissionais também excelentes candidatos a embaixadores de causas importantes. Isso e veículos publicitários. Mas alguém se lembra de cinco anúncios feitos em Portugal que tenham sido protagonizados por futebolistas?

Esta lei da rolha, esta menoridade mental imposta aos futebolistas, explica também que muito poucos ousem falar dos salários em atraso. E, com isso, transformam-se ainda mais em números anónimos.

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