Michael Haneke e Thomas Vinterberg: a intimidade arrombada

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Isabelle Huppert e Jean-Louis Trintignant ontem em Cannes Reuters

Emanuelle Riva, Jean-Louis Trintignant e Isabelle Huppert num apartamento transformado em fronteira intransponível que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos. É assim "Amour", de Michael Haneke

Uma porta arrombada pelo mundo dos vivos e a vista para uma morta: Emmanuelle Riva, a Emmanuelle Riva de Hiroxima Meu Amor - imagem que regressou a Michael Haneke quando procurava a actriz para o seu filme - está deitada na cama do seu quarto, rodeada de pétalas de flores. Cheira a cadáver num apartamento fechado de Paris. E o filme chama-se Amour (competição). Quer dizer: como ele acaba ou como continua de outra forma, quando a morte se começa a instalar.

Emanuelle Riva, Jean-Louis Trintignant (que o cineasta austríaco convenceu a sair do seu "retiro"), uma velhice mais ou menos dourada, recitais de piano e um copo ao fim da noite antes de deitar. Uma filha (Isabelle Huppert), um dedicado casal de porteiros (Rita Blanco, a porteira). E as artérias de Riva que cedem, várias vezes.

E, para o espectador e para Haneke (70 anos e, por isso, como disse em conferência de imprensa, com idade suficiente para ter um património de perdas e de entes queridos, para não poder deixar de olhar de frente e ver-se aí reflectido), a antecipação, o pavor da concretização de todos os medos. Do maior deles, aquilo que se segue ao envelhecimento, a degradação física, a morte. O apartamento em Paris de Amour é uma fronteira intransponível, que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos. É que Trintignant começa a fechar a esperada morte da mulher ao mundo. É ali que o sentido prático da filha, Huppert, se revela inadequado, como se os vivos só pudessem estorvar as regras desse huis clos terminal. É ali que Trintignant, depois de deixar partir o pombo que pela janela transpôs a fronteira, como um último acenar da "vida", acompanha o desejo da mulher de abandonar(em) o sofrimento.

Para Isabelle Huppert, disse a actriz em conferência de imprensa, este filme faz o inverso do que o senso comum costuma fazer para protecção de quem ficou. Ou seja, em vez de defender o mundo dos vivos da intromissão do mundo dos mortos, propõe que o mundo dos mortos seja deixado em paz pelos vivos. E é verdade que a coisa mais bonita e assustadora de Amour (filme que contraria o que há de mais programático e de experiência escolar no cinema do realizador de O Laço Branco - Palma de Ouro em 2009 - e onde desta vez faz sentido que ele diga, como fez ontem: "Não faço filmes para mostrar coisas") é a forma como o documentar da dor e da degradação física não serve uma proposta voyeurística. Antes, a construção de uma história de fantasmas que é só deles, Riva e Trintignant, e para onde se entra só por arrombamento. Plano final: Isabelle Huppert, algo próximo da actriz fétiche de Haneke, o último ser vivo a passar por um apartamento, depois de os mortos o terem deixado.

Inteligência de cineasta

O que se passa em The Hunt, de Thomas Vinterberg, o melhor filme do cineasta dinamarquês desde A Festa (1998, Prémio Especial do Júri em Cannes), é algo próximo também de uma intimidade arrombada. Se quisermos, até é um filme que nada nos diz de novo sobre a forma como os grupos pensam e agem, como a mentira se espalha como um vírus de histeria e passa a constituir a (nova) verdade de uma identidade social. Nada nos diz sobre uma pequena cidade em que um quarentão está a refazer a sua vida e a relação com o seu filho depois de um divórcio, quando começa a espalhar-se o rumor de que abusou sexualmente de crianças - elas contam, elas supostamente confirmam, e toda uma cidade se vira contra o profissional, o amigo, o amante. Se quisermos, finalmente: é um tipo de ficção preparada para problematizar um "caso da vida". O que Vinterberg faz, no entanto, dá provas de uma inteligência de cineasta. Primeiro que tudo, um susto perante as crianças, sempre as vítimas que devem ser protegidas, mas aqui sempre também figuradas com uma capacidade de serem "monstros", porque capazes da mentira e da manipulação. Depois, é um filme sempre à beira da convulsão emocional, filmado como que em estado de agitação e de palpitação pelo contacto com a intimidade. Como se se acendesse pela proximidade das matérias e corpos que convoca. Um desses "milagres" é o actor Mads Mikkelsen, a maior estrela cinematográfica da Dinamarca, que aqui se prestou a ser cúmplice de Vinterberg na subversão da sua persona hipermasculina, construindo os dois o retrato do emasculado "homem escandinavo".

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