Descoberto códice português do século XVI

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Sabia-se que a cópia do manuscrito estava na Biblioteca Nacional, em Lisboa, mas só agora está a ser estudada nuno ferreira santos

Passou 250 anos no arquivo de uma cidade alemã, sem que se soubesse dele. É um manuscrito de Francisco de Melo, o maior matemático antes de Pedro Nunes

As 122 folhas de autoria do matemático português Francisco de Melo são um objecto único: um manuscrito, em latim, com demonstrações das teorias de Euclides e Arquimedes. O documento é "belo", dizem os historiadores. Tem iluminuras douradas, as letras parecem estar impressas e, na parte lateral das páginas, a acompanhar as demonstrações, há várias figuras geométricas desenhadas a azul e vermelho. Não se conhece outro documento científico do século XVI oferecido a um rei português: Francisco de Melo deu o seu códice a D. Manuel I, em 1521, como agradecimento pelo financiamento da sua estadia na Universidade de Paris. Durante séculos, o documento esteve desaparecido. Até agora.

Há pouco mais de dois meses, a Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, foi contactada pela Biblioteca Estadual de Berlim, a maior e mais importante da Alemanha. Jürgen Geiss, doutorado em História e especialista na instituição, passou três meses a examinar o códice (um documento escrito à mão, que está encadernado como um livro) do matemático português. O trabalho foi-lhe pedido pelo Arquivo da Cidade de Stralsund, no Norte da Alemanha, que tinha o códice há 250 anos, com a cota Hs 767, mas que desconhecia o seu valor. "No início, não compreendi a importância [do códice], excepto as iluminuras extraordinárias e a bela caligrafia", disse ao PÚBLICO o especialista alemão em manuscritos da Idade Média e do Renascimento.

O original e a cópia

Ao longo dos três meses, Jürgen Geiss concluiu que as iluminuras do livro foram feitas por artesões em Paris. Uma iluminura é a ornamentação da primeira letra de cada capítulo destes documentos. Estas letras são maiores, têm um estilo mais complexo e, neste caso, têm motivos florais e pinturas a dourado. No seguimento da pesquisa, o especialista verificou que existia uma cópia do códice, mais tardia, que estaria na Biblioteca Nacional de Portugal, com a cota códice 2262. "Queria saber mais sobre a cópia, se algum investigador estava a trabalhar nela e se alguém me podia dizer alguma coisa sobre este autor", resume Jürgen Geiss. Teve sorte.

Há mais de um ano que Henrique Leitão, historiador de Ciência e físico de formação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, juntamente com Bernardo Mota, doutorado em História da Ciência e investigador na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estavam a transcrever, pela primeira vez, o manuscrito que estava em Portugal. Até então, a cópia era o único exemplar conhecido deste texto.

A Biblioteca Nacional informou Henrique Leitão da novidade. "Imediatamente, olhei e vi: "Mas este é o nosso documento!"", conta. "Ficámos radiantes porque finalmente tinha aparecido o original. Isto é de cair para o lado, é uma beleza."

Há muito tempo que a cópia estava no arquivo da Biblioteca Nacional, muitos historiadores já tinham sublinhado a importância de ser estudada. Mas só recentemente os dois portugueses tinham decidido ir para a frente com a tarefa. "São textos difíceis de trabalhar, porque são muito técnicos, estão em latim, são de Matemática antiga. Têm uma terminologia própria, não são coisas que se façam muito rapidamente", explica Henrique Leitão.

A cópia, a preto e branco, é de finais do século XVI ou inícios do XVII. A caligrafia é muito mais rápida, tem abreviaturas, algumas gralhas. Ao longo do tempo, a própria tinta foi corroendo pedaços do papel. Antes de o texto ser traduzido para português para ser estudado, teve de se copiar o que foi escrito em latim - e isso foi um trabalho difícil. O original, escrito por um calígrafo, parece ter uma letra impressa, de compreensão fácil. "A cópia é de qualidade deficiente, agora o original até se podia ler deitado na cama", diz Henrique Leitão, que não viu o original, guardado em Stralsund, mas teve acesso às cópias digitalizadas.

"Isto, sim, era uma prenda"

Francisco de Melo nasceu em 1490 e licenciou-se em Teologia. Esteve dez anos na Universidade de Paris, entre 1514 e 1524, onde deu aulas e desenvolveu o trabalho que está neste documento. Voltou depois para Portugal, foi reitor da Universidade de Lisboa e ainda chegou a ser nomeado bispo de Goa, mas morreu antes do embarque, em Évora, em 1536.

O códice que escreveu em Paris, a que Henrique Leitão chama Os trabalhos matemáticos de Francisco de Melo, é composto por três textos teóricos diferentes: um comentário à óptica de Euclides; outro comentário à sua catóptrica (a ciência que estuda a óptica da reflexão dos raios luminosos); e um terceiro sobre a hidrostática de Arquimedes. Séculos mais tarde, a investigação em Matemática passará pela procura de grandes questões, mas naquela altura trabalhava-se em cima das teorias dos matemáticos da Antiguidade. "O texto original de Euclides quer provar um resultado e dá uma demonstração. Então Francisco de Melo vem dizer: "Tenho uma maneira melhor de demonstrar isso"", explica Henrique Leitão. As demonstrações estão descritas em texto, o que era típico na altura. O historiador terá de traduzir esta linguagem para as equações matemáticas que hoje se utilizam.

"O manuscrito é importante porque mostra a Matemática de alto nível de um português no início do século XVI. Há uma visão muito miserabilista da história científica portuguesa. Nunca tivemos produção científica ao nível da Alemanha, França ou Inglaterra, mas tivemos alguma e estes documentos confirmam isso", argumenta Henrique Leitão.

Para o historiador, Francisco de Melo foi reconhecido na sua época e terá sido o matemático mais importante antes de Pedro Nunes, que depois marcou a história científica portuguesa no resto do século XVI, destacando-se como o maior matemático português. O próximo passo é perceber a qualidade das demonstrações de Francisco de Melo. Mas há já um aspecto que ressalta: o códice começa com uma dedicatória e um poema ao rei. O matemático enumera os objectos que chegam de várias partes do mundo. "Eu, porém, não te trago ouro nem ofertas valiosas, mas sim os primeiros frutos do meu engenho", contrapõe depois.

"Isto confirma que os grandes cientistas sempre tiveram um estatuto social alto. O rei foi o mecenas científico dele, foi quem lhe pagou os estudos em Paris. Quando volta, mostra ao rei: "Olha, isto foi o que fiz com o dinheiro"", refere o historiador. "A ciência fazia parte da simbologia do poder de D. Manuel I."

O códice, único porque é um estudo matemático transformado num objecto requintado para ser oferecido a um rei, com Matemática de primeiro nível, pode valer entre 1,5 e dois milhões de euros, na avaliação de Jürgen Geiss. Vendê-lo é impossível, diz. O desejo de Henrique Leitão é expô-lo em Portugal, o que Geiss considera que poderá ser feito. "Isto, sim, era uma prenda para o rei", diz Henrique Leitão. "No século XVI, não conheço nada tão bonito em Portugal", frisa, referindo-se a documentos científicos. Ver o códice exposto seria uma oportunidade única.

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