Torne-se perito

A viagem de um documento matemático pela Europa

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Figura geométrica na margem de uma das páginas do códice nuno ferreira santos

Stralsund é uma pequena cidade alemã, na Pomerânia Ocidental, na costa do mar Báltico, com cerca de 57 mil habitantes. Como é que um códice, escrito por Francisco de Melo, saiu de Portugal e acabou no arquivo da cidade é uma história com vários intervenientes, que passa por ofertas, compras, vendas e mortes. É também um exemplo do que pode ter acontecido a muitos outros documentos portugueses.

"Suspeito de que muito património intelectual português esteja em bibliotecas de segundo nível", diz Henrique Leitão, aludindo a documentos que andaram de mão em mão ao longo de séculos. Mas é muito difícil seguir-lhes o percurso antes de os ter nas mãos.

No caso deste códice, a maior incógnita da sua viagem continua a ser dentro de Portugal. Não se sabe como é que o documento saiu da posse da família real. O certo é que, já no século XVII, foi ter às mãos de Luís Serrão Pimentel (1613-1679), o cosmógrafo-mor e, posteriormente, engenheiro-mor de Portugal.

De alguma forma, Serrão Pimentel adquiriu o documento, mas depois ofereceu-o ao marquês de Liche, um nobre espanhol com uma extensa colecção de obras de arte e uma grande biblioteca. O marquês, que ficou com o códice numa visita ao cosmógrafo, levou-o para Espanha. Quando morreu, em 1687, o documento voltou a mudar de país.

O embaixador sueco em Madrid, Johan Gabriel Sparwenfeld, comprou parte do espólio do marquês de Liche, e a obra seguiu viagem. Anos depois (e sem se saber como), o manuscrito ficou na posse do general Axel von Lowen, que foi governador-geral de Stralsund entre 1748 e 1767, durante o domínio sueco desta região. Em 1761, o general doou à cidade a sua colecção de 2500 volumes, incluindo a obra de Francisco de Melo. "Esteve lá mais de 200 anos e ninguém notou", conta Henrique Leitão. "Até que apareceu um especialista [Jürgen Geiss], que fez um trabalho de imenso mérito e percebeu que [o documento] devia ter muito interesse para os portugueses."

Para o historiador português, estas voltas de um objecto ao longo dos séculos fazem parte de um padrão. A documentação circulava em canais que estavam relacionados com o comércio, com a riqueza. "É de prever que muitos destes manuscritos tenham ido para fora de Portugal", diz Henrique Leitão, acrescentando que o espólio português nas principais bibliotecas europeias já é bem conhecido e agora falta tudo o resto.

Será que se vai ficar à espera de mais acasos como este, em que um especialista estrangeiro bateu à porta das instituições portuguesas com um objecto valioso na mão? Henrique Leitão não vê outra forma para encontrar essa herança histórica. "A alternativa seria procurar nessas bibliotecas, só que estamos a falar de centenas de bibliotecas na Europa." N.F.

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