obesidade O filme de terror que começa no supermercado e acaba no sofá

Há cada vez mais crianças nos EUA a sofrer de diabetes tipo 2. Aquela que era uma doença de adultos atinge agora os jovens obesos, explica a investigadora norte-americana Sonia Caprio. E o pior é que os medicamentos estão a falhar. "A obesidade é uma doença." Enquanto não reconhecermos isso, não conseguiremos nada, avisa. Faltam campanhas idênticas às do antitabagismo. Em Portugal, os números também são alarmantes

As quartas-feiras, o dia em que dá consultas, são o pior dia da semana para Sonia Caprio. No consultório desta americana de origem italiana, especialista em obesidade infantil do Yale Medical Group da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, entram rapazes e raparigas enormes, alguns deles pesando 150 quilos ou mais. E ela sabe que não há muito que possa dizer-lhes.

"Estamos a falar de uma criança com 150 ou 200 quilos, que tem 15 ou 16 anos. São os melhores anos das nossas vidas e eles vêem-se assim", conta à 2 numa conversa em Lisboa, onde veio para participar numa conferência sobre este tema na Fundação Gulbenkian, integrada nos Fulbright Brainstorms e organizada pela embaixada americana e o programa Harvard Medical School Portugal. "A dieta e o exercício não vão resolver casos destes. Isso é fácil de dizer a pessoas como nós - "Vamos mexer-nos." Mas como é que vou dizer a estes miúdos para se mexerem? Eles passam o dia sentados num sofá. E depois há a questão da solidão, vão para casa, não têm pai, a mãe passa o dia fora a trabalhar, tristeza, solidão, estes miúdos estão sozinhos, deprimidos."

Como médica, o que faz é tentar tratar as complicações de saúde associadas à obesidade. "Tratamos a hipertensão, a diabetes, mas não tratamos a causa. O que é que eu posso oferecer? Não há medicamentos, os que tínhamos estavam a provocar efeitos secundários, complicações cardíacas. Resta o estilo de vida, mas isso é muito complicado." São crianças que na maior parte dos casos não têm dinheiro para se ir inscrever num ginásio. "Damos-lhes bons conselhos, mas sabemos o que encontram quando voltam a casa. E eu não posso ir com eles", diz, com um gesto de impotência.

Há aquele que Sonia Caprio descreve como o "último recurso": a operação para reduzir o tamanho do estômago, ou colocar uma banda gástrica. Aí, diz, os resultados são bons. "Se a pessoa tiver diabetes tipo 2 e 150 quilos e fizer esta operação, ao fim de dois ou três dias deixa o hospital sem ter de tomar qualquer medicamento. Pode largar a insulina [que habitualmente se toma para a diabetes]."

A operação que retira uma parte do estômago é mais invasiva, mas, segundo esta especialista, permite perder "entre 30 e 40% do peso", enquanto a banda gástrica "é menos eficaz", levando a uma redução de 10 a 15% do peso, embora tenha a vantagem de ser reversível, se houver complicações. "Quando se opta por estas soluções, passa-se a comer como um passarinho", diz. "Eu aconselho, mas é o meu último recurso." E, de qualquer forma, para as crianças pobres que recebe no seu consultório não é uma opção - o Estado não paga a operação e elas não têm dinheiro para a fazer.

Na América, realizam-se actualmente cerca de 220 mil operações destas por ano, e desde há uma década que os números não têm parado de subir. Há médicos a defender esta solução, embora outros argumentem que não é o indicado para jovens cujos corpos estão ainda em formação.

O New York Times acompanhou durante um ano Shani Gofman, uma rapariga de Brooklyn que decidiu seguir o conselho do seu médico e avançar para a operação. Apesar de ter perdido peso, Gofman já voltou a recuperar algum. E a relação com a comida tornou-se complicada - tem de comer devagar e pouco, e quando isso não acontece tem dores e vómitos. Tem frequentemente fome e, no entanto, explica o jornal, "demora uma hora e meia a conseguir fazer descer dois ovos mexidos". Os resultados são lentos, mas a operação não foi um fracasso.

O quadro que Sonia Caprio descreve da situação na América é o de uma espécie de massacre pela comida. Um filme de terror que começa nas prateleiras dos supermercados ("há filas e filas de cereais e de bebidas, para que é que precisamos de tanto?"), passa pela cultura popular ("lembram-se da série de televisão da Lassie, em que a clássica família americana tinha para o pequeno-almoço um monte de panquecas com doce por cima? Era assim que nos empurravam todas aquelas calorias, e a família dos anos 60 pensava que isso era muito bom"), e acaba muitas vezes no consultório de Sonia.

Se não visse constantemente pessoas enormes à sua frente, bastaria a Sonia Caprio olhar para os números para perceber como se desenrola esse massacre. "Trabalho nesta área há 25 anos, sou investigadora clínica, e até há dez anos raramente se via diabetes tipo 2 numa criança. Agora tornou-se muito mais comum."

Nos últimos oito anos, esteve envolvida num estudo que acaba de ser publicado no The New England Journal of Medicine, no qual 700 crianças com diabetes tipo 2 (antigamente uma doença de adultos) foram tratadas com três tipos diferentes de medicamentos. "Infelizmente é uma história triste, porque em 50% dos casos os medicamentos falharam e tivemos de lhes dar insulina [para controlar os níveis de açúcar no sangue]. São miúdos que neste momento já têm sinais de hipertensão e problemas cardíacos. Imagine como será quando tiverem 30 ou 40 anos."

A diabetes pode afectar também a visão, o sistema nervoso e o funcionamento dos rins, e levar por vezes à amputação de membros.

O estudo médico em que Caprio participou aponta claramente neste sentido: não só a diabetes associada à obesidade está a aumentar entre os jovens, como neles a progressão é mais rápida do que nos adultos, e a resistência ao tratamento é maior. Um artigo do New York Times cita os números mais recentes disponíveis, e estes mostram que entre 2002 e 2005 surgiram por ano 3600 novos casos de diabetes tipo 2 em jovens. Os especialistas não sabem dizer exactamente por que é que é tão difícil controlar a doença nestas idades, mas admitem que tenha a ver com o crescimento rápido e as alterações hormonais dos jovens nesta fase da vida.

Ainda é cedo para termos consciência das consequências de tudo isto, mas Sonia Caprio está convencida de que "as pessoas vão começar a morrer de obesidade". Isso só não acontece ainda porque o fenómeno está a atingir uma geração ainda nova, explica. "Acho que estas crianças vão tornar-se doentes muito mais cedo nas suas vidas do que estamos habituados a ver", disse ao New York Times outro dos autores do estudo, David M. Nathan, director do centro para diabetes do Hospital Geral de Massachusetts.

Outro dado sobre o qual Sonia Caprio não tem dúvidas é o de que a obesidade está associada à pobreza. "É uma questão de pobreza, e ninguém está a dizer isto de forma clara", lamenta. No estudo com crianças com diabetes tipo 2, a maioria dos participantes vinha de famílias com baixos rendimentos e de minorias étnicas: cerca de 40 por cento eram hispânicos, 33 por cento negros, 20 por cento brancos e os restantes de outros grupos. E se a obesidade e falta de exercício físico contribuem muito para o aumento da doença, há também em muitos casos uma predisposição genética para ela que não pode ser ignorada.

A situação é muito grave nos Estados Unidos, mas é também já grave na Europa. Dados recentes sobre a Grã-Bretanha, divulgados pelo Serviço Nacional de Saúde e citados pelo The Guardian, indicam que 26,2% dos homens são considerados clinicamente obesos, o que representa um aumento de 13% nos últimos 17 anos. E o número de operações ao estômago está também a crescer - se em 2000/2001 na Grã-Bretanha se fizeram 261 operações desse tipo, em 2010/2011 o número subiu para 8087.

Os dados sobre a obesidade infantil apontam no mesmo sentido: em 2010, 17 % dos rapazes e 15% das raparigas com idades entre os 2 e os 15 anos foram considerados obesos, um aumento de 11% e 12% respectivamente em relação a 1995. Se a classificação incluir, para além das crianças obesas, as que têm excesso de peso, passamos para 31% (rapazes) e 29% (raparigas).

Em Portugal, dados divulgados no início do mês num relatório patrocinado pela Organização Mundial de Saúde revelam uma situação igualmente preocupante: 20% das raparigas de 11 anos têm peso a mais ou estão obesas, o que representa a segunda pior taxa (a seguir aos EUA) dos 39 estados ou regiões avaliados. No que diz respeito aos rapazes, a percentagem sobe para 23%, mas para além dos EUA, a Grécia, a Irlanda e o Canadá têm valores mais elevados.

A quebra nos números da obesidade é algo que "vai demorar", avisa Sonia Caprio. "Há resistência a uma mudança de estilo de vida. E em classes sociais com mais dificuldades económicas, muitas vezes as pessoas não fazem porque não sabem como fazer. Além de que muitas crianças não vão ao médico porque não têm seguro médico." A solução passa por campanhas de informação, mas a especialista acha que o Estado deveria ir muito mais longe "ajudando as famílias com necessidades a ter acesso a melhor comida, a melhores empregos, a mais educação".

É preciso remar contra uma corrente muito forte. "Infelizmente, a comida que é prejudicial para a saúde é também muito saborosa. E demora tempo a alterarmos o nosso gosto, adaptando-o a algo que é melhor para nós mas não tão saboroso como o hotdog, ou cheescake, ou a Coca Cola." Italiana de origem, Caprio espanta-se com algumas coisas que vê nos EUA. "Muitos destes miúdos acordam e bebem uma Coca Cola. Eu nunca tinha ouvido coisas destas. Estão habituados a estas bebidas cheias de açúcar. Mesmo quando são pequenos e vão no carrinho, têm um biberão com sumo de maçã açucarado."

Crescer assim tem implicações físicas evidentes. "Crescem sem conhecer mais nada senão este gosto doce. O cérebro está habituado a isso e não vai querer mais nada. É como um vício. Há vários estudos que mostram isso. Quando comemos algo doce, o nosso cérebro liberta dopamina e isso faz-nos sentir bem. Mas aparentemente - e isto é algo sobre o qual ainda não temos a certeza - isso não acontece nos obesos. Esses centros de prazer no cérebro não respondem e por isso eles querem mais. É muito semelhante ao vício da droga."

O problema é que muitas das medidas que se têm tentado implementar acabam por esbarrar em obstáculos vários. Num artigo de 2009, o New York Times avaliava os resultados de uma "legislação pioneira" que obrigava os restaurantes a divulgar as calorias dos pratos, para concluir que o efeito tinha sido nulo: os clientes de cadeias como a McDonald"s, o Burger King ou Kentucky Fried Chicken continuavam a pedir os mesmos menus apesar da informação disponível sobre o nível de calorias.

Mais recentemente, em São Francisco, as cadeias de fast food foram proibidas de vender brinquedos juntamente com as refeições. Mas rapidamente a McDonald"s encontrou uma forma de contornar a restrição, propondo que os bonecos que habitualmente acompanham as Happy Meals fossem vendido se os pais das crianças quisessem pagar mais 10 cêntimos, que reverteriam para as Casas Ronald McDonald.

"A indústria alimentar é um lobby fortíssimo, que corrompe as pessoas, corrompe os cientistas", diz Sonia Caprio, "e o Governo não sabe como resolver o problema. A luta vai ser muito difícil."

Cadeias como a McDonald"s há muito que perceberam o que está em jogo e têm tentado encontrar respostas. Uma delas passa pela introdução de produtos mais saudáveis como sopas ou fruta cortada nos seus menus. Outra estratégia usada recentemente pela McDonald"s foi, conta também o New York Times, uma campanha em que mostrava os produtores aos quais compra os produtos que utiliza - uma tentativa para fazer passar a ideia de que a carne e as batatas que vende vêm também do campo.

O problema, segundo Sonia Caprio, é que, mesmo quando as grandes empresas de fast food introduzem produtos mais saudáveis, continuam a comercializar os outros, que são populares e não vão ser retirados de circulação.

A primeira-dama norte-americana, Michele Obama, tem sido uma das mais activas promotoras de um estilo de vida saudável e uma combatente contra a obesidade infantil. Um dos seus argumentos - partilhado por vários políticos - é o de que a população nos bairros mais pobres não tem acesso a legumes, frutas e outros produtos saudáveis.

No entanto, um estudo da RAND Corporation veio demonstrar exactamente o contrário: há muitos supermercados, mercearias e outros locais de venda de comida nestes bairros, a que alguns já chamavam "food deserts". O que isto revela é que mesmo na definição de políticas e na identificação dos problemas ainda há muito por fazer.

Sonia Caprio também não tem uma solução milagrosa. Mas deixa algumas ideias. "Tem de haver uma campanha drástica sobre o que é a nutrição correcta. Mesmo nas escolas médicas, não há aulas sobre nutrição. Um médico não sabe alimentar uma criança. Acho que devíamos fazer o mesmo que fizemos com o tabaco há alguns anos e que provocou uma queda do consumo. Demora muito tempo, mas acho que é possível." E, sobretudo, alerta: "Temos de falar sobre o assunto e aceitar que a obesidade é uma doença. Se não aceitarmos isso - e hoje ainda não aceitamos -, não venceremos a batalha."

E enquanto esta parecer uma batalha perdida, ela não saberá o que dizer às raparigas e aos rapazes que se sentam no seu consultório todas as quartas-feiras à espera de um milagre que lhes devolva a adolescência.

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