Os músicos excepcionais também têm mortes normais

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Da esquerda para a direita: Mike D; Adrock; e Adam Yauch

A mitologia do rock e do hip-hop foi construída à volta de vidas agitadas e mortes trágicas. Adam Yauch, dos Beastie Boys, um dos grupos mais rebeldes na sua fase inicial, teve uma existência e morte normais

Há uma semana morreu o músico Adam Yauch, um dos membros dos norte-americanos Beastie Boys, um dos grupos mais icónicos da cultura popular durante a segunda metade dos anos 80 e a década de 90. Tinha 47 anos e um cancro na glândula salivar, detectado em 2009, e assumido publicamente na altura. Fez radioterapia, que o impediu, em Abril, de participar na cerimónia do Rock and Roll of Fame, onde os Beastie Boys foram homenageados. A doença já tinha provocado um atraso no lançamento do último álbum do trio, Hot Sauce Committee Pt.2 (2011).

A sua morte não tem nada de excepcional a não ser, precisamente, o seu carácter normal. Adam Yauch não ocupará a vasta galeria de estrelas (de Cobain a Winehouse, de Jackson a Hendrix, de Morrison a Houston) que morreram em suicídios, overdoses ou acidentes trágicos e nunca deslindados.

Como alguém reflectia, no canal de televisão CNN, é como se a música popular tivesse entrado num círculo de normalidade, na vida e também na morte. O romantismo de outrora - simbolizado pelo lema "viver depressa e morrer jovem" - é cada vez mais isso: mitologia. O rock ou o hip-hop já não personificam a insurreição. São normalidade.

Tradicionalmente, são música feita por jovens, dirigidas aos jovens e sobre o que é isso de ser jovem, mas a realidade mostra-nos que, com mais de 50 anos de existência, a cultura popular se tornou multigeracional, um imenso guarda-sol que abarca diferentes vozes, estilos, perspectivas e protagonistas.

Numa entrevista colectiva aos Beastie Boys, em 2004, onde o PÚBLICO esteve, eles falavam precisamente da passagem do tempo e da forma como viviam com isso. "Claro que quando começámos nunca esperámos chegar aos 40 e continuar a fazer estas coisas, mas por um lado não sabemos fazer mais nada e, por outro, porque não? Quer dizer, porque é que apenas os músicos do jazz ou da clássica podem ter cabelos brancos?", perguntava Adam Yauch, também conhecido por MCA. "Não nos sentimos velhos, mas é muito natural que muitos fãs de hip-hop actuais não se revejam naquilo que somos."

O trio americano nunca foi um projecto pacífico no seio da comunidade hip-hop. O que não espanta. Na alvorada dos anos 80, vinham da cena punk, pelo que a paixão súbita pelo hip-hop pode ter parecido aproveitamento. Por outro lado, eram brancos, judeus, e faziam paródia com os gestos e os símbolos conotados com o rap. E existia quem não lhe perdoasse esse facto. Por último, valha a verdade, nunca foram um projecto de hip-hop, fazendo cruzamentos com outros géneros, com evidência para o rock, e sempre tiveram empenhamento político.

O primeiro álbum do trio, Licensed To Ill (1996), tinha então Yauch 22 anos, transformou-os de imediato numa sensação, através de canções como (You gotta) Fight to your right (to party), onde exploravam exactamente a veia rebelde do rock através de uma sonoridade que piscava o olho ao rap. Acabaram por ficar colados a essa imagem. Mas em álbuns como Paul"s Boutique (1989), Check Your Head (1992), Ill Communication (1994) e Hello Nasty (1998), foram complexificando essa ideia inicial, dando uma imagem mais séria, sem nunca perderem de vista a procura de novos horizontes.

No meio dos discos e concertos Yauch tornou-se budista e criou o Fundo Milapera, organização centrada na luta pela independência do Tibete e, em 1994, dizia: "Somos pessoas normais, com uma vida normal que, de vez em quando, se encontram em circunstâncias anormais, como as digressões."

Para além dos concertos, criou uma companhia de produção de cinema em Nova Iorque chamada Oscilloscope, casou e foi pai. Era uma espécie de ideólogo do projecto, para além de ecologista, vegetariano e defensor da causa do Tibete - em 2011 recebeu a bênção do Dalai Lama (numa altura em que recorreu à medicina alternativa), que o evocou um dia depois da morte.

Era o mais tranquilo dos Beastie Boys. Em 1981, quando os três se juntaram, em plena explosão da era MTV, o rock ainda era um menino rebelde que usava jaqueta e andava de mota a grande velocidade. Era uma forma de expressão própria da juventude, rápida, impulsiva, questionadora, enérgica. Com o passar dos anos essa ficção manteve-se, mas a realidade revelou-se diversa. Os Beastie Boys assistiram à domesticação do rock e do hip-hop, mas também à sua total pulverização.

Hoje deixaram de ser músicas da juventude sublevada que quer viver de forma urgente, agitada e dramática. Registam, em simultâneo e com naturalidade, os rituais de passagem para a vida adulta, a crise da meia-idade, a maturidade e a morte.

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