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Samuel Úria; Manuel Fúria; João Coração e Tiago Guilul

A influência de Dylan percorre a música portuguesa dos últimos anos

O exemplo mais recente da influência de Dylan na música portuguesa poderá estar em Cão da Morte: o jovem músico revela que Odissipo, o seu trabalho mais recente, "é um disco ainda folk, mas com arranjos rock. E se o fiz, há de ter sido roubado a pessoas como Dylan." A sua força está "em fazer músicas óptimas mas que são muito imediatas, mesmo as que têm longas histórias, como Stuck Inside of Mobile...", um sentimento também defendido por Tiago Guillul. "Gosto como trabalha por estruturas rudimentares, não precisa de muito para criar uma música. É a verdadeira humildade da música dele, pois não é preciso um som massivo para a audição ser arrepiante. Se nos está a dizer algo de interessante, isso pode valer a música." O mesmo passa pela "descrença no arranjo como maneira de preservar a canção, ou como o atraso no órgão em Like a Rolling Stone mostra que as coisas que resultam bem nascem também do improvável." Esse mesmo período "inspirou-me nas minhas primeiras gravações."

Mas o músico, também pastor baptista, não deixa de evocar a "fase cristã" de Dylan nos anos 80: "O meu pai tinha o Saved [1980] e o Shot of Love" [1981]. E mais tarde, veio a sua "conversão definitiva com o Time Out of Mind [1997]." Samuel Úria, companheiro musical na editora FlorCaveira, revela também o seu interesse pelo mesmo período e como "essa linguagem não mais abandonou a sua música." "O Dylan já gemia como um cantor de gospel encarquilhado, mas quando o gospel gemeu através dele, gerou-se uma sinceridade musical em discos de uma honestidade que não mais deixou. Slow Train Coming [1979] é um álbum notável, Saved é um enorme prazer." A conversão religiosa de Dylan nos anos 80 "surge após uma década depressiva muito pronunciada pela instabilidade familiar", explica Úria. "Enquanto músico, o pior que podia acontecer era perder essa instabilidade inspiradora com que tinha escrito Blood On The Tracks [1975], Desire [1976] e Street Legal [1978] e sofrer um desvio cristão, mas era o remédio que a alma precisava. Como também não sou versado em vida caótica e separações amorosas, é esse período de fé e de inspiração que melhor compreendo." Mas de todos os seus discos, talvez escolhesse "Blonde on Blonde [1966], Blood On The Tracks e Time Out of Mind."

Para Jorge Cruz, Dylan é um exemplo de trabalho entre tradição e modernidade. "Dylan traz outro ingrediente para as canções: mistura a música tradicional com o rock", algo que se encontra na base dos Diabo na Cruz. "Ele jogou com isso desde o início, sendo que tem fases declaradas e outras de ruptura total com o que fez." Para o músico, interessa "essa viagem", e a "grande ambição" que consegue transpor "é de um interesse pelo decorrer dos tempos, que tudo pode estar num nível entre passado e futuro, e o presente é um pretexto para fazer algo de mais transversal." As próprias interpretações das suas músicas ao vivo, que nunca respeitam uma mesma versão, mostram, para Cruz, que "dá a sensação que qualquer fase é importante para se chegar às outras." E na sua opinião, o momento que engloba essa realização "está nesta última, começando por Time Out Of Mind", o seu disco preferido de Dylan. Cruz define-o como "alguém de incontornável para quem faça canções e ponha palavras em melodias. Isso está presente em tudo o que veio a seguir, desde Springsteen a Jack White."

Para Manuel Fúria, a principal influência de Dylan está "na sua atitude". "Sempre me interessou fazer o que se vai manifestando em mim. Pode ser algo de novo ou que já foi dito, mas Dylan nunca se preocupou com isso, interessava-lhe fazer canções à sua maneira e rodear-se de pessoas que permitiam com que isso acontecesse." Essa é uma possível definição de independência: "ter a liberdade de fazer o que se acha que tem de ser feito e à nossa maneira." A preferência de Fúria vai para Like a Rolling Stone, "uma canção extraordinária." "Identifico-me com a fase Highway 61 Revisited [1965], que é mais rock, e também quando toca com The Band." Por fim: "gosto muito do Nashville Skyline, com Johnny Cash: num contexto fortemente político [1969], vai tocar para Nashville com os sulistas dos EUA e grava um disco country, algo meio reaccionário dentro do contexto. Mas não deixa de ser um disco extraordinário."

O que une a música portuguesa à volta de Bob Dylan será, portanto, uma atitude livre em relação ao uso da canção. E João Coração (Muda que Muda) sublinha o poder da personagem deambulante por uma imagem: "Quando encontro um velho cão vadio, pergunto-me sobre as estórias que se escondem na sabedoria muda do seu olhar. Dylan é o rei dos cães vadios. Subiu ao trono e fez um pacto em que trocou o amor pela razão e a vida pela voz de todos os cães. E ei-lo aqui, um rei a cantar para nós."

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