Bernardo Sassetti, mais do que um músico de jazz

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O último álbum publicado, em 2011, foi uma parceria com Carlos do Carmo Pedro Cunha

Bernardo Sassetti sabia bem que havia um disco pelo qual a sua carreira havia de ser lembrada. Seria sempre aquele que o seu nome puxaria. Porque era um disco de viragem, porque era aquele que mais vendera, porque o que uma boca diz habitualmente outra repete. Chama-se Nocturno. Por isso, vamos começar por outro.

Em 2010, Sassetti lançou Motion, álbum que o voltava a juntar ao trio – Carlos Barretto no contrabaixo, Alexandre Frazão na bateria –, a formação que mais longe o levara em termos criativos, num caminho que se tornara progressivamente mais livre, recusando as habituais estruturas do jazz ao mesmo tempo que nunca perdia de vista o lirismo aprendido com Bill Evans. Era um entra-e-sai de melodias, de partes que regressavam circularmente e soavam ao melhor que a música pode querer soar: sem rumo, mas sem se perder. No entanto, a importância de Motion não se esgotava aí. O amor furioso que Sassetti tinha pela música correu sempre em paralelo com outras duas paixões: a fotografia e o cinema (estaria mesmo a trabalhar num filme). Motion vinha dessa ideia de encadeamento, de que cada música é parte de um movimento e de uma dinâmica total. Além da música trazia fotografias suas e foi apresentado em concerto acompanhado por curtas-metragens também por si realizadas.

Tudo isto, idealmente, seria lançado numa caixa chamada Motion Box. Um dos projectos que ficou em suspenso, longe de ser o único. Há a banda sonora de Como Desenhar Um Círculo Perfeito, suite de violoncelo para o filme de Marco Martins, a música soberba composta para acompanhar o filme mudo Maria do Mar, de Leitão de Barros, que chegou a gravar com a Orquestra Sinfonietta de Lisboa dirigida por Vasco Pearce de Azevedo – e que muitas vezes dizia ter sido a mais bela que alguma vez fizera –, um projecto chamado Songs Around Circles para grande orquestra a ser cantado por um crooner ao género de Nick Cave e um disco triplo de piano solo com peças inéditas e releituras do seu reportório. Dizia não ter tempo a perder, queria era gravar discos. Gostava, aliás, mais dos discos que dos concertos. Porque quando falhava a energia de lá para cá, do piano para as cadeiras, ficava uma coisa estranha, desconfortável. E as ideias eram demasiadas a atropelar-se para não estar sempre a pensar em registar umas e passar a outras.

Motion é um parceiro visual de Ascent, álbum de 2005 para um trio aumentado (ao piano, ao contrabaixo e à bateria juntavam-se violoncelo e vibrafone), dedicado originalmente ao cineasta José Álvaro Morais, para quem Sassetti compusera a banda sonora de Quaresma. Parte da sua discografia, aliás, é feita de música para cinema: do minimalismo de Alice ao tom orquestral de Second Life e ao dramatismo enlevado de Um Amor de Perdição. Com Mário Laginha e Pedro Burmester partilhou também o projecto 3 Pianos, juntando o mundo do jazz ao da clássica, temas originais a arranjos para Bartók, Samuel Barber, Bach, Poulenc e Ravel.

A quatro mãos, as duas outras de Laginha, gravou ainda um disco de adaptação de canções de José Afonso, Grândolas. E a José Afonso voltaria no seu último álbum publicado, em 2011, uma parceria com Carlos do Carmo, para que fora desafiado pelo fadista. Em visita às canções mais marcantes na vida de Carlos do Carmo, Sassetti encontrava um inesperado companheiro de improvisação, uma alma gémea no jogo de gato e rato de tempos e respostas que desenvolveram ao olhar-se e ouvir-se no momento, gravando enquanto se descobriam.

A solo gravou Livre/Índigo, marcado pela sua admiração por Thelonious Monk. Indirectamente, o músico norte-americano apareceria também em 2006 no livro-disco, Unreal – Sidewalk Cartoon, obra singular, carregada de surrealismo e do humor que sempre arranjava maneira de se lhe infiltrar nas teclas do piano, que dizia ter aprendido a ouvir Monk. Actualmente, ia partilhando vídeos de piano solo na sua página de Facebook, com reinterpretações da sua obra mas também de temas do momento, pelos quais se apaixonava, do cabo-verdiano Bau ao italiano Ennio Morricone. Tudo isto depois do tal disco de viragem.

Em 2002, após uma prolongada ausência dos estúdios – antes houvera Mundos e Salssetti, sob a fortíssima influência do fascínio pela música latino-americana –, Sassetti levou o trio para Belgais e naquela casa feita estúdio nasceu Nocturno, um disco de assombro marcado por um respeito imenso pelo silêncio. O silêncio que, esperemos, não se siga agora. Há toda uma obra de infindável brilhantismo para e por ouvir. Resta-nos a música. Morreu-nos o melhor de todos.

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