Juan Marsé : Gosto que me contem mentiras bem contadas

Juan Marsé lançou o romance que escreveu depois de lhe ter sido atribuído o Prémio Cervantes, em 2008. Caligrafia de Sonhos é o seu livro mais autobiográfico e aquele que melhor sintetiza a sua obra. O escritor que nasceu em Barcelona, em 1933, regressa ao bairro da infância. Por vezes pensa que está sempre a escrever o mesmo livro, mas sabe que vai cotejando parcelas de um território cada vez mais amplo.

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O que o levou a escrever Caligrafia dos Sonhos?


A recordação de uma imagem dos domingos à tardinha, na pior época da ditadura franquista, em 1948, quando tinha 15 anos. É a imagem de uma senhora e da filha, de 16 anos, caminhando pelas ruas para irem a um baile de domingo, onde iam sempre, chovesse ou nevasse. A mãe acompanhava-a para ver se a filha encontrava noivo. Iam muito endomingadas, aperaltadas e pintadas. A rapariga não era muito agraciada mas agradava aos rapazes do bairro. Era uma imagem triste e, ao mesmo tempo, risível. Costumávamos fazer troça delas, iam as duas de braço dado.

Não saberia dizer-lhe hoje qual foi a vida daquelas pessoas, para o romance reinventei situações e vidas. É isso que faz um romancista. Podemos partir de uma imagem real mas a imaginação impõe-se e o romance converte-se em outra coisa diferente do que aconteceu. Espero que aquela rapariga tenha encontrado o seu noivo, se tenha casado e tenha sido feliz.

Este romance é uma síntese?

O tema da aparência e da realidade, a cenografia urbana é a mesma de outros romances, a época é significativa - esses anos duros da ditadura franquista. Sim, há uma síntese. Inclusive algumas personagens foram tratadas em outros romances: o capitão Blay de O Feitiço de Xangai, o pai ausente e uma personagem real, o senhor Sucre, que é José María de Sucre, pintor que vivia naquele bairro, um amigo de Dali.

É ele que revela: “Não somos mesmo nada” e a prova disso é que “a selecção nacional de futebol já só pode jogar contra Portugal”.

[risos] Na época em que os embaixadores saíram de Espanha em represália à ditadura de Franco, o país ficou diplomaticamente isolado. Desde pequeno que ouvia dizer que ‘España era el culo del mundo’ e um dos sintomas era esse: os outros países nem queriam jogar futebol connosco, a não ser a Alemanha e Portugal.

Um dos momentos divertidos é quando os miúdos ouvem um actor de Hollywood dizer que alguém foi mestre de esgrima em Barcelona.

Foi uma experiência real com amigos do bairro. Éramos jovens, eu devia ter 10 anos, esse filme rodado em Hollywood é de 1942. Conhecíamos Basil Rathbone porque fazia sempre de vilão. Vimos esse filme no cinema de bairro, uns amigos e eu, e ficamos pasmados ao ouvir o nome de Barcelona. Nessa época em que éramos “o cu do mundo” parecia-nos um milagre que em Hollywood soubessem que existíamos.

A visão do mundo dos miúdos é construída a partir do que viram no cinema.

O cinema era importante para a mentalidade infantil da época porque havia poucas distracções. Se um dos rapazes tinha uma bicicleta era um milagre. Jogávamos com bolas de trapos feitas em casa pelas mães ou avós. O cinema converteu-se num lugar de encontro, onde se passavam tardes a ver filmes. Levávamos merenda. Por causa da Guerra Civil, toda uma série de filmes dos anos 30 só estrearam na década de 40. Pude vê-los quando já tinha idade porque a Guerra Civil interrompeu a distribuição de filmes.

Regressa aos jogos de linguagem que já utilizou, ao acto de contar aventis.

É uma homenagem à literatura de ficção. Inventámos esse jogo porque não tínhamos brinquedos. Não podíamos jogar futebol e sentávamo-nos a contar histórias que eram uma mistura de filmes que víamos, de literatura de quiosque, e também de histórias que ouvíamos comentar em casa sobre feitos que tinham a ver com a guerra, histórias de familiares no exílio. Toda essa mistura estava nas aventis. Os miúdos mais imaginativos contavam as histórias, era tudo inventado e, às vezes, mentiras tão grandes como a dos apaches a galoparem nas praias do Arizona. Havia sempre um mais sabichão que dizia que “não podia ser porque no Arizona não há praias”. Então respondíamos-lhe que era indiferente que houvesse ou não praias do Arizona.

Serve-lhe para fazer uma homenagem à literatura dentro do tema do romance, que é outro.

Caligrafia dos Sonhos é a história de um rapaz que está a lutar com a realidade que não lhe agrada, com uns pais que não são os seus, com uma relação com o bairro e com a cidade que não funciona. Ringo é fantasioso. Quer ser pianista, não pode sê-lo porque perde um dedo. Gosta de uma rapariga mas não gosta, ela tem boas pernas mas não é bonita. Há o despertar do desejo, do sonho...

E também a percepção de que à sua volta nem tudo o que parece é.

Ringo sofre essa ilusão. Por isso fiz uma observação sarcástica na última frase do romance, a de que era um rapaz “tão formal, tão observador e responsável” que se enganou. Ele não aprova aqueles amores da senhora gordita com o senhor Alonso, parecem-lhe absurdos, o seu conceito das relações amorosas tem mais a ver com Hollywood do que com a realidade. No final, Ringo tem de pactuar com a realidade e fá-lo mediante a impostura, a ficção, reinventando uma carta. Esse é o tema nuclear da história. Ao fim e ao cabo é uma história iniciática, de uma aprendizagem, que tem a ver com a vida e com a capacidade dos desejos e dos sonhos.

É autobiográfica a explicação que Ringo recebe da avó quanto à sua condição de filho adoptivo.

Há uma explicação pela primeira vez, na minha obra, pela boca da avó do que aconteceu com a minha adopção [Juan Marsé é filho adoptivo] que ocorreu de maneira pouco convencional. Não houve a tal adopção oficial, digamos assim, e depois veio a Guerra Civil e os meus pais deixaram correr. Por isso não regulamentei os papéis oficiais do assunto até depois de 1956. Cumpri o serviço militar com os meus apelidos biológicos.

Por causa da investigação feita por um jornalista que está agora a escrever a sua biografia, ficou a saber que essa história que a sua avó lhe contou pode ser fantasiosa.

O jornalista quis saber detalhes dessa história que conto e que a minha avó me contou. Foi à procura de saber onde foi enterrada a tal criança que a minha mãe adoptiva teve e morreu ao nascer. Não conseguiu encontrar informações. É uma história estranha. A minha mãe sempre me disse que perdeu o primeiro filho e que os médicos lhe disseram que não podia ter mais e por isso me adoptou. Mas era mentira porque ela teve mais filhos, eu tenho dois irmãos, um rapaz e uma rapariga. Isto leva-me a pensar que se calhar teve um aborto, não chegou a ver nascer esse filho e ficou tão frustrada... De qualquer maneira a história que me contou a avó era esta que conto no livro e que depois foi confirmada pela minha mãe. Como é uma história de que gosto e como sou um fã da ficção mais do que da realidade, fico com essa história fantástica da avó e do taxista que chega, etc.

Trabalha com a memória.

Um escritor sem memória não é nada. Quis recuperar uma memória colectiva e pessoal que tem a ver com uma época em que o regime franquista subjugou, adulterou e falseou a memória colectiva. Era preciso dar-lhe voz. Nunca propus deixar um testemunho fidedigno de uma época - deixo isso para sociólogos, historiadores e políticos. Gosto de literatura, de ficção, gosto que me contem mentiras bem contadas e que tenham alguma conexão com a realidade. Gosto de contar histórias pelo gosto de contar histórias.

É catalão mas não faz da identidade tema.

Essas questões da pátria nunca me interessaram. A pátria do escritor não é nem sequer a língua, é a linguagem. Isso ou se entende ou não se entende.

Escreve em castelhano ou em catalão?

Em castelhano. A pouca instrução que recebi - aos 13 anos abandonei o colégio para ir trabalhar, e fiquei encantado da vida porque não aprendia nada naquele colégio além de rezar o santo rosário todo o dia - foi em língua castelhana. Os filmes que víamos, os romances que líamos, eram em castelhano. A mitologia pessoal que fui criando sobre a ficção e as fantasias era criada em língua castelhana.

Em família falávamos catalão. O castelhano era a língua da mitologia, as aventis que contávamos eram em castelhano. Não concebíamos ver um western em língua catalã. A linguagem que criava a sua mitologia era em castelhano. Por isso digo que a pátria de um escritor, ademais a da infância, não é a língua, é a linguagem, é a forma que utilizas, o vocabulário, as palavras que usas para transmitir uma história.

O que marca a diferença entre este livro e a sua obra anterior?

Às vezes tenho a sensação de que estou a escrever o mesmo livro desde há algum tempo. Sei que não é isso, sei que vou cotejando parcelas de um território cada vez mais amplo. Embora o território seja o mesmo, creio que o vou ampliando. Mas há recorrências temáticas. A diferença estaria em questões formais. Neste livro consegui sintetizar mais do que em outros e há um simbolismo maior em certas cenas. Não sei se o leitor o vê mas neste livro há uma recorrência curiosa que diz respeito às mãos. As mãos são como ecos e ressonâncias que actuam no leitor e oferecem-lhe coordenadas narrativas. Essa seria um pouco a diferença. Esses ecos e ressonâncias neste romance são superiores aos dos anteriores.

 

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