O homem que matou o Presidente

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PHILIPPE WOJAZER/REUTERS

E se Nicolas Sarkozy tivesse perdido as eleições de 2012 no dia de 2007 em que foi eleito Presidente da República? Mesmo não sendo possível fixar o momento exacto em que o país lhe virou costas, esse outro 6 de Maio marcou o início do desamor dos franceses pelo homem que tinham acabado de eleger

Apesar de todo o seu voluntarismo e determinação, Nicolas Sarkozy nunca mais conseguiu fazer esquecer a primeira impressão desastrosa que deixou naquele dia 6 de Maio em que foi eleito Presidente com base em promessas de modernização, reformas e rupturas.

François Hollande, o seu rival socialista, tem amanhã a eleição praticamente garantida, não tanto pelos seus méritos próprios mas sobretudo porque não é Sarkozy. Antes mesmo de os socialistas terem designado o seu candidato no Outono passado, aliás, já as sondagens o davam ganhador. Fosse quem fosse. Tudo menos Sarkozy.

Este divórcio dos franceses com o seu Presidente é o resultado de um complexo conjunto de factores que incluem a sua personalidade, promessas eleitorais não cumpridas e escândalos em permanência.

As coisas começaram mal logo no primeiro dia em que, acabado de eleger, Sarkozy tratou de festejar a vitória num restaurante de luxo do centro de Paris, o Fouquet"s. Além da família e amigos, a lista de convidados incluía uma sucessão de nomes sonantes de grandes empresários, donos das maiores multinacionais. As mesmas que são vistas simultaneamente como motivo de orgulho nacional e inimigas do povo, pela distância entre o luxo dos dirigentes e as dificuldades dos trabalhadores.

Naquela noite, Sarkozy, o Presidente do "poder de compra" do povo, que assumiu a máxima de "trabalhar mais para ganhar mais", transformou-se no "Presidente dos ricos" - por oposição aos trabalhadores -, um "Presidente bling bling" exibicionista, membro do jet set da finança e amador de relógios Rolex.

Esta primeira impressão desastrosa foi confirmada e agravada nos dias logo a seguir, quando os paparazzi inundaram as revistas cor-de-rosa com fotografias de um cruzeiro da família Sarkozy em Malta, no iate de um amigo multimilionário. Era este, então, o mosteiro para o qual o candidato afirmara que, caso fosse eleito, se retiraria logo a seguir para reflectir e preparar em sossego as novas responsabilidades?

"Antes mesmo de ser Presidente, Nicolas Sarkozy matou o Presidente. Eleito, mas ainda não investido, o Fouquet"s, o iate e o gozo ostentoso da vitória" foram o pecado original que os compatriotas não lhe perdoam, escreve Christophe Barbier, director da revista L"Express, no seu livro Maquillages.

A causa do desastre tem, aparentemente, um nome: Cécilia. Segundo a profusão de biografias e investigações jornalísticas sobre o mandato presidencial, foi a segunda mulher de Sarkozy, companheira inseparável de todos os instantes e principal conselheira política, que decidiu o programa dos festejos pós-vitória, incluindo as férias, e fez a lista dos convidados. Segundo os mesmos relatos, o Presidente foi a vítima: em plena ruptura conjugal, que procurou a todo o custo evitar, não prestou a devida atenção aos pormenores, ocupado que estava em fazer as vontades de Cécilia, porventura na esperança de a conseguir segurar.

"Desde Maria Antonieta, nenhuma [mulher] custou tão caro ao seu marido na liderança de França", ironiza Barbier.

Cherchez la femme...

Cécilia já se tinha eclipsado uma primeira vez, em 2005, por outro homem. Durante um ano, o país assistiu à infelicidade patente do então ministro da Administração Interna que, já se sabia, seria quase certamente o candidato da direita às presidenciais de 2007.

A fugitiva regressou em 2006, ninguém sabe se com a intenção de ficar ou se apenas, como muitos suspeitam, para não ser acusada de uma eventual derrota. Sabe-se, em contrapartida, que Sarkozy acreditou piamente que o reencontro de ambos era "a sério, sem dúvida para sempre", como escreveu então no seu livro Témoignages.

Soube-se depois também que Cécilia deixou claro no início da campanha eleitoral que, depois do voto, desapareceria para sempre.

Sarkozy terá confessado a uma amiga que o dia da eleição "foi o dia mais triste" da sua vida, segundo conta a jornalista Catherine Nay no seu recente livro L"Impétueux: a mulher com quem construiu passo a passo, durante vinte anos, o percurso que o levaria ao Palácio do Eliseu não estava ao seu lado no dia da vitória, e nem sequer se dignou a votar na segunda volta. "O vencedor de 6 de Maio é um vencido do amor", escreve a jornalista. O divórcio foi anunciado em Outubro.

Se o infortúnio privado de Sarkozy poderá ter suscitado alguma simpatia entre os compatriotas, a descoberta do seu romance, exactamente dois meses depois, com Carla Bruni foi encarado como a prova absoluta da sua inconstância e instabilidade. Com a entrada na vida de Sarkozy da top model de 39 anos, celebridade internacional pelo físico, pela fortuna e pela reputação de devoradora de homens - incluindo, alegadamente, os músicos Mick Jagger e Eric Clapton, o milionário Donald Trump, e até o ex-primeiro-ministro socialista Laurent Fabius -, o Presidente voltava a assumir um comportamento totalmente desadequado à gravidade e seriedade da função. As imagens da visita de ambos à Eurodisney ou aos templos de Luxor, no Egipto, e de Petra, na Jordânia, foram encaradas como o expoente máximo do mau gosto do "Presidente bling bling".

A reconversão do romance em casamento em Fevereiro de 2008 acabou por acalmar a indignação, tanto mais que Sarkozy passou a partir daí a ter o cuidado de fechar a porta da sua vida privada. Simples e discreta, a nova primeira-dama acabou por ser aceite relativamente depressa, sendo a cereja no bolo o nascimento da sua filha, Giulia, em Outubro passado.

É a Carla Bruni, igualmente, que são atribuídas algumas mudanças operadas desde então no comportamento de Sarkozy, incluindo a suavização da imagem "bling bling".

Ao invés, ninguém conseguiu até agora avançar uma explicação plausível sobre as razões que poderão ter levado Sarkozy a cometer o verdadeiro pecado mortal do seu mandato: o facto de ter deixado - ou impulsionado, não é claro - o seu filho Jean, de 23 anos e estudante do primeiro ano de Direito, candidatar-se no Outono de 2009 à eleição (garantida devido à maioria do partido presidencial) para a liderança da instituição que gere os terrenos do bairro empresarial de La Défense. Numa altura em que grande parte dos franceses de 23 anos está desempregada ou, com sorte, em estágios profissionais, as aspirações de Jean Sarkozy com o apoio paterno a um cargo de grande importância (mesmo se não remunerado) foram vistas como um caso de nepotismo descarado. A retirada da candidatura por Jean já não foi a tempo de evitar a verdadeira ruptura do eleitorado com o pai.

Louis de Funès

Mesmo sem os escândalos, Sarkozy é, a todos os títulos, um Presidente atípico, e isso é algo que, tudo indica, os franceses apreciam muito pouco.

À gravidade majestática, distante e reservada que é suposto ser um atributo da função presidencial, Sarkozy contrapõe uma hiperactividade e frenesim desconcertantes, em conjunto com uma proximidade e familiaridade instantâneas com os interlocutores e uma rejeição firme de regras burocráticas ou protocolares, a começar pelos jantares oficiais.

Sarkozy tem igualmente a mania de andar sempre a correr, de fazer viagens-relâmpago e de saltar de umas coisas para as outras à velocidade da luz. E porque não, uma forte tendência para transformar a função em espectáculo permanente, ou não fosse ele um grande egocêntrico com uma forte dose de narcisismo. "Cavalo fogoso" é uma descrição de Sarkozy atribuída ao rei Abdallah da Arábia Saudita.

Os jornalistas alemães contam que quando os próximos da chanceler Angela Merkel quiseram ajudá-la a perceber exactamente a personalidade do Presidente francês, ofereceram-lhe um DVD de Louis de Funès.

Os franceses dizem, ainda, que Sarkozy tem a obsessão de controlar tudo, de tal forma que foi simultaneamente Presidente da República, primeiro-ministro e, pelo menos, ministro das Finanças e dos Negócios Estrangeiros.

É por isso mesmo, aliás, que Sarkozy é a cara de tudo o que correu mal durante a sua presidência, cujo preço vai pagar caro no domingo, tanto mais que as reformas prometidas em 2007 ficaram aquém do prometido.

O carácter dominador do Presidente francês não deixará por outro lado grandes saudades entre alguns parceiros europeus, sobretudo dos países mais pequenos, por causa dos enxovalhos, ordens e ultimatos que lhes impôs ou pelo seu humor corrosivo à custa dos outros.

O jornal francês Le Monde relatou em Outubro passado o desabafo de um líder europeu: "Quando nos telefonamos entre dirigentes europeus, e falamos de Nicolas Sarkozy, dizemos: contas-me a má-língua dele sobre mim, ou começo eu?"

Em contraste com este carácter cortante e em clivagem permanente, o Presidente tem uma capacidade surpreendente de empatia e solidariedade com os que sofrem que, dizem os que o conhecem, é totalmente genuína. Onde quer que haja uma desgraça, aí está ele para consolar vítimas e familiares e anunciar de imediato alguma medida para endurecer as regras contra os violadores, assassinos ou qualquer que seja o crime que desencadeou a sua comoção.

Apesar de tudo, o Presidente francês não deixa de suscitar alguma admiração entre os pares europeus pela forma como negociou em seu nome, mas sem mandato, um acordo de paz entre a Rússia e a Geórgia, em 2008, ou convenceu os responsáveis britânicos e americanos a apoiar o ataque à Líbia e travar Khadafi. Mas também por ter tido a inteligência de pôr o ego para dentro nas negociações com Merkel sobre a resolução da crise do euro apesar de ferver por dentro de raiva e impaciência com a relutância e rigidez da abordagem da chanceler - "a boche", como, segundo a imprensa francesa, fala dela em privado.

Aparentemente, é nas situações de crise e de forte tensão que Sarkozy consegue dar o seu melhor e mesmo ultrapassar-se. O país ficou aliás a conhecê-lo numa dessas situações, quando aos 38 anos e presidente da Câmara de Neuilly, enfrentou sozinho o sequestrador de dezenas de crianças num jardim-de-infância coberto de explosivos e auto-intitulado "bomba humana". Perante as ameaças deste de fazer ir tudo pelos ares, Sarkozy conseguiu convencê-lo a libertar, uma a uma e ao longo de três dias angustiantes, todas as crianças.

O que fará Sarkozy com a derrota depois de 6 de Maio? Ninguém sabe ao certo. "Ganhar dinheiro", diz ele.

Seja como for, já ninguém lhe tira o orgulho de ter sido eleito Presidente da República aos 52 anos, quando o seu pai o avisara, em criança, que com um nome húngaro e os seus maus resultados escolares nunca seria ninguém em França.

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