Uma busca em direcção ao sangue

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Em disco, os instrumentos eléctricos evocam melodias de voz vindas da tradição; ao vivo o funk e o disco-sound invadem o bailarico, num casamento improvável mas que funciona RITA CARMO

Ao vivo são infernais. Com Roque Popular, preparam-se para percorrer "as terrinhas" onde costumam ser mais felizes.

Oito horas da noite da passada sexta-feira, dia 27, e os Diabo na Cruz estão enfiados no camarim do Hard Club onde, duas horas e meia depois, actuarão. Há um sofá que dá à justa para três pessoas, uma mesa e duas cadeiras, gente pelo chão. Um deles, de penteado à moicano, calças de ganga justas cinzentas e casacão de lã da mesma cor é o líder, vocalista e principal compositor Jorge Cruz. Anda à volta do iPhone a escrever e reescrever alinhamentos para o concerto dessa noite.

"O disco saiu há quatro dias, demos poucos concertos, ainda estamos a ver o que funciona. Os nossos concertos funcionavam porque eram curtos e intensos. Agora estamos a trabalhar com 16, 17 ou 18 canções, é preciso pôr pausas". Coloca a hipótese de deixar de fora Pioneiros - a decisão não é pacífica, visto tratar-se de uma das mais explosivas canções do novo disco, mas acaba por ser aceite. Todos estão de acordo que é preciso momentos em que o ritmo baixe. Ponderam a melhor colocação possível para Luzia, canção mais lenta (mas igualmente bela) e rapidamente chegam a um consenso. Ninguém parece estar com espírito para discussões.

"Estamos cansados", diz Manuel Pinheiro, o percussionita, e faz sentido. Tocaram em quatro das três noites anteriores, primeiro em Castelo Branco, concerto integrado na Semana Académica, depois em Guimarães e na noite anterior em Viseu - outra Queima das Fitas. "Começámos a tocar às três da manhã. Deitámo-nos tardíssimo. Estamos mortos". Por um minuto ponderam o que significa tocar em semanas académicas. "Nas Queimas o público é sempre igual da uma tarde às seis da manhã: estão meio mortos", diz um. "Bêbedos", explicita outro.

Estão habituados a tocar em Queimas. Desde 2010, quando a banda se estreou com Virou, deram mais de cem concertos, boa parte deles em terras do demo - isto é, em terras pequenas, em condições diferentes das que se encontram em auditórios e salas como o Hard Club.

Quem não os conhece, no entanto, não nota cansaço: Márcio Silva pega na braguesa, Bernardo Barata, o homem do baixo, numa guitarra e começam a improvisar. De súbito João Gil (teclas) pega no iPhone e faz uma melodia por cima e os manos Pinheiro (Manuel e João, baterista e fundador da banda) também sacam dos seus e começam a inventar beats. A coisa - uma espécie de reggae rústico digital - tem graça mas a meio perdem-se e desatam a rir. "Isto é que é fusão", diz Manel, o mais agitado de todos.

Operação familiar

A frase diz bem da capacidade que têm de gozarem consigo mesmos. A dada altura Cruz pergunta-nos: "Então, siderado com as drogas, o sexo e o rock"n"roll nos bastidores dos Diabo na Cruz? Nem os Led Zepelin dos 1970s conseguem competir." Estes moços levam a pacatez a um extremo. A dada altura Cruz diz, com humor, que "a monogamia é uma lei absoluta" na banda, referência ao estatuto de pais de família de uma parte deles.

E pode dizer-se que são uma operação familiar. À mesa de jantar são 14: sete músicos, dois roadies, dois técnicos de som, um de luz, um runner e o manager, Pedro Santos. Santos, tal como Cruz, é de Aveiro e conhecem-se há anos. João Pinheiro e Barata, que com Cruz formam o núcleo duro da banda, tornaram-se próximos do líder durante as gravações de Sessão de Cezimbra, o disco de estreia de João Coração, na altura em que Cruz foi morar para Lisboa e conheceu uma data de mentes que pensavam de forma semelhante - ele que até aí tinha levado carreira solitária. Sérgio Pires andou pelos Sloppy Joe, banda reggae do Porto de quem Cruz era amigo. João Pinheiro trouxe o irmão para este disco. A dimensão familiar e de amizade está mais presente do que a do negócio.

"O Manel desempenhou papel fundamental neste disco, que o diferencia muito do anterior", diz Cruz. "A presença da percussão, as peles dos tambores, isso traz uma dureza que não tínhamos".

Tem razão e isso é ainda mais nitído ao vivo, onde, como imaginávamos, as canções de Roque Popular não só crescem como se transformam. Em disco, dizia Cruz antes do concerto, a ideia é "pôr os instrumentos eléctricos a evocar melodias de voz vindas da tradição, resgatar a tradição oral indo buscar melodias que conseguimos recordar mas que na realidade nunca ouvimos antes". Ao vivo é outra coisa: o funk e o disco-sound invadem o bailarico, num casamento improvável mas que funciona. As guitarras explodem, mas bateria e percussões exponenciam a explosão. Tudo se torna grandioso e febril, como o rancho da aldeia tomasse anfetaminas e quissesse ser Springsteen ou Clash.

O feito é ainda mais impressionante se pensarmos que tiveram "não mais de 15 dias de ensaios" porque "o disco foi acabado mesmo em cima do prazo previsto para a edição". Tal como os ensaios, o período de composição foi demasiado curto para as aspirações de Cruz. "Tenho a impressão de que com um ano de trabalho só nisto fazíamos um disco...", e deixa a frase a pairar, não arriscando um adjectivo.

Cruz acredita que Roque Popular é menos imediato que Virou, que precisa de mais tempo para entrar, mas a verdade é que a primeira meia-dúzia de filas vive um pequeno estado de euforia. No sábado, quando nos encontramos com Cruz para almoçar, ele manifestará surpresa por ver "as pessoas já a saberem de cor todas as letras". Mas a noite não é propriamente uma vitória apesar de serem chamados para encore atrás de encore: estava apenas meia casa.

"Quando começámos também tínhamos pouca gente. E até há uns dias era um banda que não tinha disco novo há dois anos. E de qualquer modo tudo está menor: vês menos gente a atravessar a ponte [25 de Abril] de carro, menos gente nos restaurantes, nos cinemas". Tem a esperança de que, como aconteceu no primeiro disco, nas terras pequenas, que se fartaram de percorrer, voltem a ser chamados. "Curiosamente, quem nunca nos convida são os festivais de rock. E fico sempre com a impressão de que partimos aquilo tudo".

O público dos Diabo na Cruz é estranho, no sentido de não ser específico. Parecem ter do lado deles a malta nova das terras mais pequenas e, definitivamente, não fazem furor entre os hipsters. No concerto do Hard Club era esta a única sub-faixa social em falta, de resto havia tudo: velhos rockers, betos, putos com uma incapacidade natural de juntar duas peças de roupa sem parecerem geeks, putos de t-shirt e calças de ganga aos pulos, trintões.

Estes últimos costumam ser uma larga fatia do público e, quando os concertos não são tardios trazem os filhos. "Não consigo perceber porquê", dzia Cruz, "mas os putos parecem gostar disto. Os pais da nossa idade [Cruz tem 36 anos] trazem os miúdos com quatro, cinco, seis, até com oito ou dez anos, e dizem "Eu vim por causa dele" ou "Comecei a ouvir-vos por causa do meu filho"".

Depois conta uma história engraçada, reveladora do seu sentido de humor seco: "Quando há uns anos acabámos o primeiro single [Dona Ligeirinha] mostrei à minha mulher e ela não gostou. "Parece música para putos com distorção". Se calhar é mesmo".

Cruz aprecia esta frontalidade da companheira. "Casei com uma mulher do Porto para ter os pés no chão".

Há uma razão para Cruz desconfiar de excessos de confiança: passou uma carreira toda a ser desprezado. Só quando chegou a Lisboa e encontrou uma data de gente que pensava da mesma maneira é que a carreira arrancou: produziu João Só, Os Pontos Negros, Os Golpes, fez "letras para a indústria", "coisa que gostava de fazer mais vezes" porque o fascina a ideia de criar um produto para um público específico. E reescreveu as suas canções antigas num disco belíssimo, Barra 90.

Contudo, quando se trata das coisas dele, não há cá nada de criar produtos para públicos específicos: no domingo diz-nos que "podia ter feito um disco com uma dezena de Donas Ligeirinhas mas seria demasiado fácil".

O que queria era outra coisa: "Estou interessado no que nos é comum há anos, em algo de essencial". Lembra um dia em que estava com B Fachada e o resto da banda no meio de uma serra naquela zona a que Aquilino Ribeiro chamou "Terras Negras", e que influenciam as letras deste disco: "Ouvia o vento nas oliveiras e honestamente ocorreu-me que aquilo era único e português. Talvez não seja, mas pareceu-me. E disse ao Fachada: "Porque é que não há música que soe a isto?"".

Não tem a certeza de o ter feito, mas está certo de um par de coisas: a primeira é que "pode ser muito engraçado ter milhares de pessoas a cantar" as suas canções mas isso "não significa muito se não existirem as canções", forma de dizer que quer deixar obra; a outra é que "este disco sabe de onde vem, tem muito presente de onde vem".

O que ele fez em Roque Popular, com toda a urgência que não se perde nas múltiplas camadas é muito simples: "Uma busca em direcção ao sangue".

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