Mãe e filho

Um pesadelo sensorial sobre o maior pesadelo de qualquer mãe

Não nos parece que alguém saia de "Temos de Falar sobre Kevin" a dizer que “gosta” do filme da escocesa Lynne Ramsay. Não porque o filme seja mau - é até bastante bom - mas porque é difícil gostar de um filme assim. Adaptado do romance de Lionel Shriver, é um pesadelo avassaladoramente desagradável, um filme que nos atira de cabeça para o inferno diário do maior medo de qualquer mãe que se preze: ter dado à luz o filho dos infernos. Ou, no caso, Kevin, que já em bebé parece ter uma qualquer centelha demoníaca no olho, um Damien lá de casa que parece comprazer-se em causar mal a quem o rodeia, mesmo que seja do seu sangue. E a mãe é (atenção ao simbolismo!) Eva, uma escritora de viagens cuja maternidade lhe cortou literalmente as asas, acorrentando-a ao destino da dona-de-casa-esposa-mãe-de-família habitando o subúrbio letárgico.


Entre Kevin e Eva há um braço de ferro longo de 16 anos com poucas tréguas, muitas batalhas e demasiadas vítimas colaterais. Mas houve realmente? Ou estará tudo na cabeça de Eva, que revê incessantemente o passado à procura do que fez mal? Temos de Falar sobre Kevin saltita entre o objectivo e o subjectivo, constrói-se pelo olhar traumatizado de uma mulher que se pergunta se gostou o suficiente de um filho que nunca gostou dela, se a culpa da matança liceal que o atira para a prisão é em última instância sua. Já sabíamos - do anterior A Viagem de Morvern Callar (2001) - que a Ramsay, cineasta vinda da fotografia, era esteta, precisa, atenta, cerebral, determinada. Aqui, com a cumplicidade do director de fotografia Seamus McGarvey, do montador Joe Bini (colaborador regular de Werner Herzog) e do compositor Jonny Greenwood (dos Radiohead), encena um pesadelo sensorial em tons grand-guignol, algures entre o abandono surreal de Dario Argento e a precisão formalista de Stanley Kubrick, aqui baralhada e fragmentada numa estrutura de quebra-cabeças ao sabor da memória. Além disso, há uma ligação quase orgânica de Temos de Falar sobre Kevin a Depois das Aulas (2008) de António Campos, com o qual partilha a sensação constante de angústia e ameaça, o olhar esquinado sobre a adolescência, o formalismo desorientador e frio das imagens, e o actor Ezra Miller.

Mas Temos de Falar sobre Kevin é bicho próprio, intransmissível, ancorado na interpretação transcendentemente auto-flageladora da divina Tilda Swinton, construindo uma declaração de intenções que pode nem sempre ser do melhor gosto mas é sempre inteligente, desafiadora, perturbante. É um filme que pergunta, sem dar respostas. É, também, por isso que é difícil gostar dele.

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