A dor de Criolo

1 Ele chega de branco com uma asa amarela ao pescoço. À sua frente tem milhares de pessoas e é quase uma da manhã. Canta a primeira canção, desata a asa - uma T-shirt com São Jorge, Salve Jorge -, estende-a entre a percussão e a bateria, um talismã. Eu, que nunca o vi antes, abro a boca porque ele caminha com passadas tribais, arregala os olhos, curva-se num transe, esfrega a cabeça, esfrega a cara. Mas à minha volta todos parecem tê-lo visto e ouvido antes porque se atiram para a frente a cada verso, braços, tronco, garganta, uma negrinha atrás de mim grita o mais alto que pode e entre cada canção chama: "Criolo! Criolo! Criolo!" Ele diz que canta porque está desesperado e sabe que é por isso que estamos ali. Todos estamos desesperados.

2 A primeira vez que ouvi falar em Criolo foi há um ano, na canção Não Existe Amor em SP. O link do Youtube dizia que o autor era um rapper. Aquilo não era um rap mas era uma grande canção. Nunca mais consegui voltar a São Paulo sem me lembrar dela. Está no céu de cimento, no ângulo dos espelhos, nos graffiti.

Já este ano, quando Criolo ficou famoso, a entrevistadora Marília Gabriela perguntou-lhe qual era a diferença entre a São Paulo dessa canção e a Sampa, de Caetano. Faz sentido: a cidade absorveu as duas.

3 Kleber Cavalcante Gomes lhe chamaram os pais, seu Cleon e dona Vilani, ele metalúrgico, ela benzedeira do bairro, nordestinos migrados para a periferia de São Paulo. Dona Vilani tinha tal paixão pelas letras que em criança, lá no Ceará, quando a mandavam comprar um pedaço de carne, vinha a correr para que a folha de jornal que a embrulhava não embebesse o sangue e desse para ler ainda. Criolo conta esta história e outra que ele próprio viveu: quando se foi matricular para os últimos anos do secundário, Dona Vilani perguntou se também se podia matricular. Então estudou três anos ao lado do filho, depois fez filosofia e ainda uma pós-graduação em línguas e semiótica. Mas não só continuou a morar na periferia como abriu lá um "café filosófico".

O lugar chama-se Grajaú, fica no sul de São Paulo e Criolo também não o deixou por ter ficado famoso. Dedicou-lhe uma canção, "Grajauex": "É o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex/ Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max/ Os canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os MC das antiga é dinossauro T-Rex."

4 Criolo passou anos a trabalhar em educação pela arte com garotos de rua mas é rapper desde a adolescência. No fim dos anos 90 conheceu Cassiano Sena, o DJ Van Van e com ele criou as Rinhas de MC"s, para improvisos à desgarrada. Um primeiro disco consolidou-o no meio do rap em São Paulo. Assinava então Criolo Doido.

Quando fez 20 anos de palco pensou retirar-se. Mas DJ Van Van disse-lhe que talvez só estivesse a começar. Juntou o que entretanto compusera e com a ajuda de dois produtores entusiasmados viu o esboço de um disco: soul, funk, bolero, reggae, samba, além de rap. Um dia que estava à espera para gravar veio-lhe uma canção extra. Chamava-se Não Existe Amor em São Paulo. Decidiram incluí-la em terceiro lugar no disco. E dar o disco, porque Criolo acredita que tudo o que lá está lhe foi dado. Então pô-lo na Net.

5 Isto aconteceu em 2011. O que se seguiu foi a explosão de Criolo. Disco do ano, canção do ano, artista do ano. Caetano Veloso apareceu ao lado dele na sessão de prémios para cantar Não Existe Amor em SP. Alguém mostrou a Chico Buarque um vídeo no Youtube em que um rapper de São Paulo reinventava a letra de Cálice à capela num boteco. O rapper era Criolo e quando Chico voltou aos palcos, ao fim de cinco anos, para os shows do seu último disco, deixou toda a gente boquiaberta ao cantar a versão Criolo de Cálice: "Pai / Afasta de mim a biqueira, pai / Afasta de mim as biate, pai / Afasta de mim a coqueine, pai / Pois na quebrada escorre sangue." Biqueira é ponto de venda de droga, biate é quem se aproxima por dinheiro, coqueine é cocaína.

Para Criolo eram já 23 anos de palco, com alguns concursos perdidos, falhanços, olhares de lado. Mas ao Brasil pareceu um piscar de olhos: o rapper que de repente até Chico e Caetano cantavam.

6 A revista Trip fez uma capa, levou-o para Nova Iorque, falou com a mãe. Na entrevista que lhes deu, Criolo diz que canta para expressar uma dor que não passa, que bom mesmo seria não sentir essa dor. E em tudo o que diz, na hesitação como na contorsão, não há uma nota falsa.

7 Chega a noite de 14 de Abril na Fundição Progresso, centro do Rio de Janeiro, lotação esgotada. O rapper B Negão aqueceu bem a massa antes do intervalo. A banda de Criolo ocupa finalmente o palco. Como diz o DJ Van Van, tudo é novo para eles, que estão na estrada há tantos anos: banda é novo, cachet é novo, hotel é novo, avião é novo. Aí vem o Dj Van Van, tranças eléctricas e microfone na boca, grande mestre de cerimónias.

Todo de branco, com a asa de São Jorge já pousada, Criolo traz por dentro da camisa as suas missangas de Candomblé. Vê-se que são brancas e azuis quando ele pula. Porque ele pula, roda, estaca como um animal, domina o lugar como um índio ou um profeta. As mulheres apertam-se contra as grades, mas não só elas. Garotos de boné que sabem todas as letras, um matulão que despe a T-shirt e a atira para o palco. Criolo pega nela: tem a cara dele em versão Andy Warhol.

Quando a banda ataca o bolero, a Fundição Progresso balança num êxtase. E daí para samba, reggae, funk, rap. Tudo o que no disco aparece separado, como um cardápio, ao vivo é fluido e coeso. É preciso ver Criolo para perceber porque é que ao fim de 23 anos de estrada toda a gente que o vê fica apaixonada. Ele canta porque tem uma dor que não passa e nada é tão verdade para quem está ali.

8 O som nem estava bom, Criolo interrompeu, entreteve. Já tinham vindo convidados especiais, rappers famosos e rappers amigos, até um irmão. Agora vem mais um, pequenino, grisalho. "É um menino, é um menino", repete Criolo. É Caetano Veloso. Começam a cantar juntos Não Existe Amor em SP. O microfone de Caetano não funciona. Ele desiste, deambula pelo palco, Criolo vai atrás, fazem uma dança, cantam na cara um do outro, abraçam-se, Criolo, 36 anos, Caetano, 70. Criolo levanta-o do chão como um menino. Foi ele quem escreveu, reescrevendo Caetano: "Cartola virá que eu vi / tão lindo e forte e belo como Muhammed Ali". O Brasil crioulo, que já era samba e será o futuro.

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