entre os Madredeus

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A essência dos Madredeus está intacta. Vimo-los ao vivo em Londres. Com nova formação, uma jovem vocalista e renovados arranjos para as canções de sempre. Mas esta não é uma digressão qualquer. É o sinal inequívoco de que a aventura continua

Uma da manhã, em Londres, e Pedro Ayres Magalhães, líder dos Madredeus, acabou de sair de um Kebab - o único sítio que ainda serve refeições àquela hora - e lança, divertido: "É por isto que estou assim", diz, olhando para o seu físico. "Acordo de madrugada, não engulo quase nada pelo dia e acabo por comer de mais agora, com a agravante de me ir deitar de seguida." E lança, provocador, na direcção do jornalista: "Pode escrever, porque é verdade." Já está. É assim com os Madredeus. Na segunda-feira, acordaram em Lisboa, às cinco da manhã. A tarde foi passada em afinações de som. Depois foi o concerto numa das salas mais emblemáticas da capital inglesa, o Barbican Centre, e, no final, a descompressão. Existe a sensação do dever cumprido.

Depois da saída da cantora Teresa Salgueiro, sente-se que o grupo se reencontrou com a sua essência, título do novo álbum, onde revisitam canções do seu repertório com novos arranjos e uma nova formação, de onde se destaca a voz de Beatriz Nunes, de 23 anos.

Ao longo dos anos, o projecto foi conhecendo diversas formações, mas desde que Teresa Salgueiro seguiu um percurso a solo, em 2007, que o grupo e a própria cantora nunca mais alcançaram a projecção que haviam conseguido em 25 anos de carreira. Depois da saída de Salgueiro, iniciou-se um novo ciclo com a Banda Cósmica, mas a operação não foi totalmente bem sucedida. Pensou-se que seria o fim. Mas é capaz de não ser assim.

Neste momento, os Madredeus têm uma vasta carteira de actuações internacionais e mais datas se seguirão. Pedro Ayres não gosta de falar de um novo ciclo, para ele é apenas uma continuação - "não estávamos inconscientes quando fizemos a Banda Cósmica", diz, "era um projecto acústico e este é música de câmara, apenas isso" -, mas é evidente que existe um novo alento no ar. Pedro Ayres (guitarra clássica) é o timoneiro, coadjuvado por Carlos Maria Trindade (teclados). Depois existem três companheiros novos em violino e violoncelos (Jorge Varrecoso, António Figueiredo e Luís Clode) e a voz de Beatriz, que, em Londres, perante uma sala de eleição como o repleto Barbican, se portou à altura do evento.

Era apenas o seu segundo concerto. Começou tensa, mas na segunda metade do espectáculo libertou-se por completo, mostrando todos os seus dotes vocais. É claro que existem semelhanças com Teresa Salgueiro, mas também a afirmação de uma personalidade única. "Foi muito bom" diz-nos ela, no final, satisfeita. "Senti-me confortável com o repertório e um grande alento por estar a cantar numa sala destas. Não senti a responsabilidade. Ou, por outra, senti-a, mas como um desafio, com adrenalina e energia, e não como peso."

É uma mulher entre homens, mas esse facto não lhe é estranho. "O meio do jazz, que conheço bem, é também muito masculino", diz, rindo-se, acrescentando que o processo de integração foi "pacífico e profissional." Tal como os músicos das cordas, também ela vem do São Carlos. "Somos todos músicos profissionais e eu já canto em coros e como solista há algum tempo", reforça. "Por isso, a integração foi tranquila, principalmente a partir do momento em que começámos a trabalhar o repertório com as partituras".

"É isto! Afinadíssima"

Beatriz tem formação de canto e também de jazz. Nas audições, Pedro Ayres diz que percebeu de imediato que ela era especial. "Foi a primeira, do primeiro dia de audições, e pensei logo: "É isto!"" Mas afinal o que é isto? "Uma pessoa afinadíssima, com grande preparação e com formação musical", esclarece. "Uma voz jovem, o que é importante para o nosso repertório, antigo e moderno. E é uma pessoa que, para além de ter a formação do Conservatório de canto, estudou também na escola superior de jazz, e tinha estudado belas-artes. Ou seja, é alguém com uns pais especiais, que ajudaram a criar uma pessoa muito aberta e independente, que vive sozinha desde os 18 anos, que sabe o que quer e que estudou tudo o que havia no espaço de um só mês."

O mês foi o de Outubro do ano passado, quando começaram a ensaiar todos em conjunto. Mas antes já tinha havido uma longa preparação, recorda o violinista Luís Clode: "Acabou por ser fácil integrar-me", diz ele, vindo da Orquestra Sinfónica Portuguesa, "mas deu imenso trabalho". "Há um ano e tal que ensaiamos, mas com bons músicos acaba por se chegar lá. Na orquestra, às vezes somos 60 ou 70 e até 100. Aqui somos menos, mas acaba por ir dar ao mesmo: trabalha-se, ouve-se os colegas e há proximidade com o público."

Também ele se desfaz em elogios a Beatriz, "desinibida, madura para a idade que tem". "Este concerto foi uma dádiva, assim numa das salas mais importantes do mundo."

Ao contrário do que se poderia supor, o fantasma de Salgueiro não esteve presente nos ensaios. "Sei que as comparações são inevitáveis", afirma Beatriz, "mas não as temo, porque são trabalhos, formações e pessoas diferentes". "Nos ensaios nem sequer falámos da Teresa", revela Pedro Ayres, "só das canções 1, 2 ou 3, ou de notas longas ou curtas". Ela nem sequer tem os discos antigos e não quis ouvir. "Não precisa", diz Pedro Ayres.

Foi em casa dos pais, no Barreiro, durante a infância, que ela pela primeira vez tomou contacto com a música do grupo. "Os meus pais ouviam e eu conhecia as canções mais conhecidas, em particular dos primeiros álbuns e aquelas que passavam na rádio. Mas muito do repertório que estou a cantar neste momento não o conhecia."

Uma certa transcendência

No Barbican, a assistência é transversal, ao nível das idades, e constituída por ingleses. A música é solene, fazendo vir ao de cima o virtuosismo dos músicos, mas ainda mais envolvente do que o habitual, pelos novos arranjos. À frente, Beatriz mantém-se recolhida sobre si própria, mas a voz expande-se, enchendo a sala.

Por duas ou três vezes, dirige-se ao público, tímida, mas rigorosa. Em Amanhã, A sombra ou O pomar das laranjeiras, o andamento é lento e o ambiente é melancólico, enquanto em A palpitação algum dinamismo rítmico toma conta da acção, procurando uma certa transcendência. No final, o público pede mais. E vai ter mesmo mais.

Turquia, Hungria, Eslovénia, Porto (27 de Maio, Casa da Música), Lisboa (CCB, 31 de Maio), Áustria, Luxemburgo, Alemanha, Suíça, França ou Holanda são alguns dos lugares que, nos próximos meses, irão receber a nova reencarnação do projecto que mais fez por abrir as portas do mercado internacional aos músicos portugueses.

No final, perguntamos a Pedro Ayres se esse facto não terá sido esquecido com a chegada da nova geração de fadistas ao mercado internacional. "Mas o que não é esquecido em Portugal?", ri-se ele. "Sobe a maré e quando a maré desce está tudo apagado, não é?"

Mas logo a seguir desvaloriza: "Não me posso queixar do meu país. Fizemos trezentos concertos em Portugal e vendemos um milhão de discos. Agora os Madredeus não são celebrados, não são estudados, os aspectos da sua obra não são motivo de curiosidade? Eh! Pá! Paciência! Não posso fazer nada."

Nos bastidores, para além da mãe e da irmã ("estão aí porque a minha irmã nasceu cá e aproveitaram para ver o espectáculo. Para a minha família, é importante voltar a tocar", diz) encontra-se um velho companheiro dos Heróis do Mar, Pedro Paulo Gonçalves, a viver em Londres e a terminar um novo álbum do seu projecto Ovelha Negra.

"São amigos, é claro que os venho ver", diz Pedro Paulo, elogiando aquilo a que acabara de assistir: "Gostei muito, especialmente a segunda metade foi maravilhoso. Esta formação tem uma força fabulosa."

Ele e Pedro Ayres foram companheiros nos anos 70 nos Faíscas e nos Corpo Diplomático, projectos pioneiros do punk em Portugal. E isso não é esquecido, mesmo quando estamos a falar dos Madredeus. "Este grupo sempre quis cultivar o amor pela música, a autoria, ser uma oficina de canções em português e tocar ao vivo. No início uns sabiam música, outros não tinham estudado nada. No fundo, éramos um grupo punk. Cada um fazia uma nota e daí saía música."

Agora é diferente. "É outra linguagem", diz. "Mas as canções são as da nossa caixa. O grupo teve várias formações. Foi mudando. Agora é um grupo de repertório. Agora estamos aqui e estou satisfeito. Saí- mos de Lisboa, estava aqui esta gente toda para nos ouvir, é muito bom. Não apareceu o Cavaco Silva a dar-nos uma faixa, mas somos pagos dignamente, vivemos modestamente destas actividades - antes vendiam-se discos, agora não se vendem. Mas neste momento estou muito contente. O nosso repertório ainda é meio desconhecido no mundo inteiro e em Portugal também. Ainda existe muito por fazer, muita gente para ouvir a nossa música."

No final toda a gente está satisfeita. A operação Londres correu bem. Os Madredeus estão mesmo de volta ao centro dos acontecimentos, embora Pedro Ayres queira vincar que nunca os deixaram. E se calhar tem razão: "Desde miúdo que tenho a mania de tocar, de fazer concertos, de escrever canções, e a vontade de mostrar repertório português noutros países. Resumindo, é isto." E está tudo dito.

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