A actualidade de Norberto Bobbio

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Os que dirigem a esquerda democrática devem ler com atenção Norberto Bobbio. O país talvez fique a ganhar

"Talvez seja a esquerda democrática quem pode e deve escutar as vozes que proclamam que o homem é mau mas que, ao mesmo tempo, deve ser ajudado de todas as formas, mesmo as mais prosaicas, incluindo a assistência na saúde e na reforma". Encontrei esta citação de um artigo de Claudio Magris, um dos grandes intelectuais europeus do nosso tempo, num livro de Norberto Bobbio, esse notável pensador político a que não é possível deixar de regressar.

Nesta época de asfixiante predomínio da dimensão económica (veja-se a propósito o excelente artigo de António Pinto Ribeiro na última edição do ípsilon, neste jornal), há uma certa liberdade num gesto quase diletante de voltar ao encontro com escritores e com filósofos. Bobbio viu na afirmação de Magris o elogio de uma coisa rara que, à falta de melhor, definiu como iluminismo pessimista. A partir de uma visão lúcida, ainda que um pouco cruel, do Homem, é, afinal, possível construir uma teoria política generosa e assente na vontade de melhorar as sociedades humanas. O jurista e filósofo italiano encontrou, provavelmente, aí o fundamento da sua opção por uma posição política que caracterizou como um moderantismo de esquerda e que constitui a base do seu pensamento.

Já muito perto do ocaso da sua longa vida de grande intelectual comprometido com o mundo cívico do seu país, Norberto Bobbio publicou uma pequena obra subordinada ao tema da distinção entre esquerda e direita. Não deixa, aliás, de ser curioso que um pensador identificado com o socialismo liberal italiano tenha sentido a necessidade de dilucidar a pregnância e a natureza da distinção entre estas duas categorias hoje tão contestadas no pensamento político ocidental. Com rigor analítico, que o caracterizava e que não colidia com uma excepcional capacidade de construção de abstracções úteis, Bobbio associou esta díade a uma outra distinção, a que atribuiu igual importância, entre as posições extremistas e as posições moderadas, quer à esquerda, quer à direita. Para ele, os extremistas tinham em comum o desprezo pelo valor da liberdade - uns, a direita, desvalorizavam-na em função do culto da ordem e da tradição entendido numa perspectiva autoritária; outros, a esquerda, ignoravam-na em nome de um igualitarismo radical.

A estas duas posições opunham-se as respectivas versões moderadas, que se identificavam no apego ao respeito pelo princípio da liberdade com alicerce estruturante das sociedades contemporâneas. Para Bobbio, o que distinguia a esquerda e a direita moderadas era a forma como se relacionavam com a noção de igualdade - para a direita esta restringia-se a uma dimensão meramente formal, para a esquerda expandia-se para um plano substancial. Assumindo-se claramente como um homem historicamente filiado na grande tradição da esquerda democrática, Norberto Bobbio considerava que a superioridade axiológica desta última assentava numa melhor articulação das ideias liberdade e igualdade. A dado passo do seu texto recorreu mesmo ao contributo inestimável de Fernando Sávater, o filósofo espanhol proscrito pelos extremistas bascos, que definiu com especial acutilância o tempo que atravessamos como a época do predomínio da ideia de liberdade. Só que Sávater considera imprescindível a associação da noção de liberdade enquanto libertas a coactione com entendimento do mesmo conceito como libertas a miseria. Na sua óptica, a esquerda caracterizar-se-ia precisamente pela tentativa da institucionalização universal daquilo que designa por política de liberdade, tanto na sua dimensão formal, como na sua expressão material a que corresponderia aliás a acepção da liberdade em sentido substancial e como tal identificada com a libertas a miseria.

É justamente neste plano que se coloca o cerne de uma das grandes questões do nosso tempo - como estabelecer uma relação equilibrada e justa entre os princípios da liberdade e da igualdade. A dupla distinção estabelecida por Bobbio entre esquerda e direita, e extremistas e moderados permite compreender melhor a realidade política actual e aumenta a nossa capacidade de lançar um olhar prospectivo para o futuro. Bobbio teve o grande mérito de demonstrar que é possível manter uma posição séria assente nos grandes princípios doutrinários da esquerda democrática sem qualquer cedência a primarismos infantilizantes, que infelizmente são tão frequentes nos tempos que estamos a atravessar. Para ele, a esquerda não assentava numa visão antropológica básica, numa perspectiva da história pouco elaborada e numa concepção da política insuficientemente pensada. Bobbio contribuiu para a reconciliação da esquerda com a inteligência, quer do ponto de vista analítico, quer no plano puramente especulativo. Não foi, certamente, pouca coisa.

Como todos sabemos, o século XX assistiu ao triunfo efémero e à derrocada final dos sistemas assentes numa visão da esquerda antiliberal e antidemocrática. Se hoje a presença de esta linha discursiva ainda se faz sentir, é sobretudo como nostalgia infecunda ou como denúncia impotente. A esquerda que triunfou e que continua a contar é a esquerda moderada, a tal em que Bobbio se reconhecia.

Por isso mesmo, o que nos importa é o confronto entre as versões moderadas da esquerda e da direita, entre os defensores de uma concepção mais exigente e densa da ideia de liberdade e os que se limitam a preconizar um "igualitarismo mínimo". Esse confronto também se faz sentir na sociedade portuguesa. Estou mesmo persuadido que esse combate vai marcar os próximos anos da nossa vida pública.

Recorramos a dois exemplos recolhidos nas últimas semanas - os discursos reiteradamente proclamados pelos ministros da Segurança Social e da Saúde. Pedro Mota Soares, que aparenta representar a linha mais liberal de um partido onde ainda subsistem alguns resquícios da herança democrata-cristã, invoca o princípio da liberdade de escolha para desferir um violento ataque ao modelo de Segurança Social actualmente em vigor, de natureza exclusivamente pública. Paulo Macedo tem-se empenhado em salientar os supostos defeitos acumulados do Serviço Nacional de Saúde, com o intuito cada vez mais claro de promover uma radical alteração do modelo de organização de tão nevrálgico sector. Ambos aproveitam a presente crise que, nunca é demais lembrá-lo, teve a sua origem na absoluta desregulação do capitalismo financeiro dominante, para porem em causa o papel do Estado e facilitarem a afirmação hegemónica da oferta privada. Mota Soares e Paulo Macedo, e com eles praticamente todo o Governo, pretendem em nome da liberdade pôr em causa um princípio de igualdade sem o qual a própria liberdade perde grande parte do seu sentido. Para usar a sábia expressão de Sávater, eles não se preocupam com a libertas a miseria. Isso é muito perigoso e preocupante. Basta ter em consideração o papel historicamente desempenhado pelo SNS para a redução das desigualdades ou o contributo do sistema público de Segurança Social para a dignidade humana, para compreendermos o que está em causa. Se há um conselho que hoje me permito dar a quem actualmente dirige a esquerda democrática, é o de lerem com atenção Norberto Bobbio. Garanto que não perderão tempo com isso e o país talvez fique a ganhar.

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