Torne-se perito

E se o olfacto fosse a próxima arma para encontrar um criminoso?

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Sandra Soares estuda o medo e a memória das sensações Joana Bourgard

Um cheiro associado ao medo fica marcado na memória, defende uma equipa da Universidade de Aveiro, que está a tentar demonstrar que este sentido pode servir, no futuro, para ajudar a resolver crimes

Não ouvimos o som, mas as imagens são tão brutais quecausam desconforto, até medo. Um homem é revistado por um polícia junto a uma carrinha. De repente, outro homem sai do veículo e no momento seguinte os dois já estão a disparar contra o corpo do agente. A imagem fosca de uma câmara de vigilância, que captou a cena nocturna, dá um tom de proximidade ao crime cometido numa estrada dos EUA. Perante isto, os filmes mais violentos no cinema perdem em relação à realidade.

O vídeo está a passar num computador do laboratório do grupo Psilab, na Universidade de Aveiro. Liliana Costa, aluna da licenciatura de Psicologia, está sentada à frente do computador com uns auriculares. Enquanto segue a cena, segura um frasco quase enfiado no nariz. No recipiente há um pedaço de tecido que exala o cheiro de suor de um indivíduo. Disseram-lhe que era de um dos homens que cometeu o crime - o que faz com que o horror ganhe contornos de intimidade. É o exigido para o teste de associação e memória que a equipa de Sandra Soares, do grupo Psilab desde 2009, está a experimentar.

"Sabemos que o odor e a memória olfactiva é de todos os sentidos aquele que matura mais cedo durante o crescimento humano. Conseguimos através de um odor recuar à nossa infância e recordar detalhes muito específicos relativamente a episódios que ocorreram nessa altura. Portanto, até que ponto isto poderia facilitar a identificação de criminosos?", questiona Sandra Soares.

O olfacto é um sentido poderoso. O filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu que "o odor do corpo de uma pessoa é o próprio corpo que inspiramos pelo nariz e pela boca". As moléculas que libertamos entram pelos canais respiratórios e instalam-se no tecido olfactivo. Apesar de sermos os primatas com a menor capacidade olfactiva - durante a evolução humana perdemos muitos genes que permitem identificar cheiros -, se as células nervosas que temos na zona do nariz forem capazes de ler a molécula, então sentimos um cheiro.

Por trás da hipótese de Sandra Soares de que a memória dos cheiros pode ajudar a identificar um criminoso há um acumular de informação científica que tem dado pistas sobre a relação entre o cheiro e o medo. "O sistema olfactivo tem uma proximidade com áreas [no cérebro] preponderantes no processamento do medo." Este tipo de investigação é muito recente a nível mundial. Mas já há alguns estudos que mostram que as pessoas que sentem o cheiro de alguém que está com medo ficam mais alerta e com as capacidades cognitivas mais apuradas.

Neste caso, o foco é outro. Como é que memorizamos os cheiros quando eles estão associados a experiências aterrorizadoras? "Em situações em que estamos expostos a estímulos que são muito activadores do ponto de vista emocional em relação ao medo, essas memórias tendem a ser relembradas de forma mais facilitada, se forem comparadas com estímulos neutros", diz Sandra Soares. "Pareceu-nos lógico tentar perceber se os odores corporais, em situações de crime, poderiam potenciar as memórias e a identificação de um odor associado àquela pessoa", descreve a cientista, que é psicóloga clínica.

Para isso, a equipa reuniu 30 voluntárias que assistiram a gravações de homicídios, violações, raptos, tudo real e praticado por homens. Tal como Liliana Costa, durante o visionamento as voluntárias cheiraram um odor, com a informação de que pertencia ao homem do crime.

Passado 15 minutos do visionamento, as participantes cheiraram cinco frascos, cada um com o suor de um indivíduo diferente, um dos quais era o mesmo que tinham cheirado durante o visionamento das gravações. O objectivo era acertar no "homem do crime" através do cheiro.

Em paralelo, outras 30 mulheres viram um vídeo, cujo conteúdo (também real) era neutro, enquanto cheiraram o odor de um homem. Disseram-lhes que era o do homem que aparecia no vídeo. Quando tentaram adivinhar o odor certo do homem, de novo entre cheiros emcinco frascos, 43% das mulheres acertaram.

Possíveis aplicações

No caso das voluntárias que viram as cenas de crimes, o valor subiu para 63%. "Os resultados corroboram a [nossa] hipótese", diz Sandra Soares, que ainda não publicou estas conclusões numa revista científica, onde serão avaliadas por outros cientistas. A psicóloga já tinha estudado o medo durante o doutoramento, no Instituto Karolinska, na Suécia (analisou medos antigos a nível evolutivo, como o despertado pelas cobras).

Liliana Costa, depois de cheirar em sequência os cinco odores distintos, também acerta no frasco. A seguir, é informada de que, afinal, o cheiro original que lhe foi dado não era realmente o do criminoso, mas de um dos vários alunos da universidade que andaram uma manhã com tecido debaixo das axilas para captar o suor. A "mentira" foi para tornar a experiência mais realista.

Segundo Sandra Soares, ainda há muito trabalho pela frente antes de estas descobertas poderem influenciar a forma como a investigação criminal é feita. "Não avançaria para propor o que quer que fosse sem ter segurança daquilo que estou a apresentar", garante a cientista. Agora, a equipa quer perceber se a memória dos odores se mantém, caso o teste seja feito passado mais tempo.

Mas a cientista acredita que estas memórias podem fazer a diferença: "Sobretudo se estivermos a pensar num crime que envolva oclusão da face por parte dos criminosos, ou em que não haja luminosidade ou em crimes sexuais em que as vítimas sejammulheres", enumera Sandra Soares. "As mulheres tendem a dar mais relevo ao olfacto no contexto de intimidade, seja forçada ou não. Quando há medo extremo e a sobrevivência é colocada em causa, é possível que os odores forneçam pistas extremamente valiosas neste contexto."

Se isso ocorrer, será o admirável mundo novo para este sentido: "Subestimamos a nossa capacidade olfactiva e o uso que podemos fazer dela. É um sentido muito antigo a nível evolutivo, que já nos serviu muito mais e que ainda serve."

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