“Janela Indiscreta” (“Rear Window”), de Alfred Hitchcock (1954)

Para vencer o tédio e o calor do Verão de Nova Iorque, entretém-se, enquanto convalesce de uma perna partida no seu pequeno apartamento, a seguir os modos de viver dos seus vizinhos

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No caso de Alfred Hitchcock – e, como temos visto, também no de William Wyler e no de Billy Wilder, para dar mais dois exemplos – o difícil será, parece-me, deixar algum filme por mostrar, entusiasmado, a quem, como os meus leitores, merecer a atenção do meu entusiasmo. Se estiverem recordados, “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, de 1958, foi o primeiro título a entrar na nossa lista de ”Filmes sem Idade” que, semanalmente, temos estado a construir. Hoje acrescentamos “Janela Indiscreta”, de 1954, também com James Stewart como protagonista (tal como em “A Corda”, de 1948, e na segunda versão de ”O Homem que Sabia Demais”, de 1956).

James Stewart, de “Peço a Palavra”, de Frank Capra (1939), de “Casamento Escandaloso”, de George Cukor (1940), de “A Loja da Esquina”, de Ernst Lubitsch (1940), e, é claro, de “Do Céu Caiu uma Estrela”, igualmente de Capra (1946), é um dos meus “actores sem idade”, um dos ingredientes secretos das grandes iguarias cinematográficas que Hollywood cozinhou entre 1930 e 1960. Como esta, que ainda hoje podemos saborear em DVD, feita do pequeno mundo dos vizinhos das traseiras que o repórter fotográfico L. B. Jefferies connosco partilha.

Normalmente apresentado como “mestre do ‘suspense’”, Hitchcock demonstra aqui ser merecedor de um outro epíteto igualmente difícil, o de “mestre dos espaços exíguos”, exercício que pratica em “Chamada para a Morte”, que apura em “A Corda” e que leva ao limite em “Um Barco e Nove Destinos”.

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“Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock DR

Cornell Woolrich, escritor mais conhecido em Portugal pelos livros publicados pelas colecções Vampiro e Xis sob o pseudónimo de William Irish, foi o autor do conto que John Michael Hayes transformou no argumento que Hitchcock trabalhou para nós, espectadores. Com os seus planos, sequências, direcção de actores, com a montagem de George Tomasini, a direcção de fotografia de Robert Burks, a direcção artística de Joseph MacMillan Johnson e de Hal Pereira, a cenografia de Sam Comer e Ray Moyer, a música de Franz Waxman e o guarda-roupa de Edith Head, Hitchcock montou um malabarismo de vidas tão benignamente devassadas como, por oposição, o são doentiamente em “Violação de Privacidade”, de Philip Noyce (1993), um termo de comparação para tentarmos entender como podem ser tão diferentes os resultados de pontos de partida tão semelhantes.

Jefferies tem vida própria, não vive a vida dos seus vizinhos. Tem uma namorada elegante (Grace Kelly), aprecia a “filosofia caseira” da fisioterapeuta enviada pela companhia de seguros (Thelma Ritter), recebe um amigo da secção de homicídios da polícia (Wendell Corey). Para vencer o tédio e o calor do Verão de Nova Iorque, entretém-se, enquanto convalesce de uma perna partida no seu pequeno apartamento, a seguir os modos de viver dos seus vizinhos, que lhe merecem, alternadamente, compreensão, admiração, compaixão e curiosidade: o casal que dorme na varanda, o compositor, a bailarina, os recém-casados, a solteirona solitária, a escultora, o caixeiro-viajante e a mulher.

Mas nesse fabuloso cenário confinado das traseiras de quatro prédios e do pátio interior que aquelas delimitam, o que mais há é vida, não só a dos inquilinos vigiados por Jefferies, mas a que  Hitchcock nos faz adivinhar através da estreita abertura que dá para a rua traseira: os carros que passam, as crianças que brincam no passeio, um homem que vende jornais, outro que franqueia a passagem para entregar um bloco de gelo ao domicílio. Sim, ali há lares, ali há gente; tudo tão bem representado que nos custa dizer-lhes adeus.

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