"Revoltámo-nos, mas temos de derrotar o mundo"

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Milhares de sírios estão refugiados em campos perto da fronteira entre a Turquia e a Síria AFP

Taman viajou da província síria de Hama até à Turquia para pedir ajuda. Até foi recebido na embaixada dos EUA, mas regressou há dias, de mãos vazias. Ontem, helicópteros bombardearam a sua região, matando pelo menos 35 pessoas

Asala, em L, é pequena. Entra-se pelo pedaço mais estreito, espaçoso por ter apenas um pequeno móvel com um grande aquário em cima, casa de quatro peixes gordos. No maior dos dois rectângulos, não mais de cinco metros por dois, cabem três sofás e três mesinhas de apoio, um aquecedor e um móvel com uma pequena televisão desligada.

Quase não sobra espaço livre e o ar está cheio de fumo. Mustafa está sentado ao lado de Taman Esselum, o convidado que veio de Hama "com uma missão" (e é o único que não fuma). Ibrahim divide outro sofá com Mohamed; Abdul e Riaad ocupam o terceiro.

A casa, uma cave por onde se chega descendo umas escadas depois de se entrar por um quintal, tem ainda hall, casa de banho, cozinha e um quarto. Mas o coração é a sala, não é preciso passar lá muito tempo para o perceber. A sala e Mustafa, o anfitrião, que ao cair da noite espalha tapetes pelo chão, despeja cinzeiros e traz um bule de chá atrás do outro, enquanto limpa as mesas onde espalha copos.

Mustafa trabalhava num restaurante, agora é um revolucionário. Em Setembro, quando grupos de desertores do exército de Bashar al-Assad começaram a organizar-se para defender os seus bairros, ajudados por civis que decidiram pegar em armas para defender as suas famílias, Mustafa tornou-se num combatente. Largou o emprego e entrou no Exército Livre da Síria.

"Vim pela primeira vez para Antakya em Junho. Voltei logo a seguir e passei três meses a combater. Depois estive aqui quase dois meses e regressei de novo. Em Fevereiro vim pela última vez", conta o jovem magro e muito moreno, de olhos doces e lábios grossos, camisola de lã enfiada dentro das calças de ganga.

Mustafa é de uma aldeia perto de Jisr al-Shughur, mas combate onde for preciso, sempre em Idlib, a província do Nordeste da Síria que se estende até à fronteira turca. (Segundo a oposição, os bombardeamentos de Assad mataram 115 pessoas em Idlib entre domingo e segunda-feira, enquanto soldados no terreno executaram 35 homens na região.)

Do lado de cá da fronteira está a província de Hatay, habitada hoje por milhares de refugiados sírios, espalhados por campos de tendas. Nas últimas semanas, Ancara começou a transferir alguns destes sírios para campos em Kilis, a província a Leste. (Ontem soldados de Assad abriram fogo contra um desses novos campos, ferindo quatro refugiados e dois funcionários turcos.)

Igreja, mesquita, sinagoga

A uns 40 quilómetros da fronteira, ergue-se a cidade de Antakya, capital de Hatay, que fez parte da Síria até 1939. A população de 1,5 milhões divide-se entre sunitas e alevitas, uma dissidência xiita próxima dos alauitas, a seita do Presidente sírio. Há ainda uma minoria cristã - e a Igreja de S. Pedro, uma das mais antigas do mundo, fica quase ao lado da mesquita sunita, na mesma rua da antiga sinagoga e do local de culto alevita.

Os sírios que se tornaram refugiados na Turquia, 24 mil nas contas oficiais, responsabilizam os alevitas por serem obrigados a viver em campos, mesmo quando ali têm familiares, do tempo em que Hatay era Síria. "Alguns são rudes connosco", diz Mustafa. "Estão com medo. Antes, o Governo era próximo de Assad. Mas a Turquia é uma democracia, não podia ficar calada. E agora não sabem o que pode acontecer quando Assad cair", elabora Riaad.

O outro lado desta história é que os refugiados contam com a solidariedade de grande parte da metade sunita da população.

Ibrahim, o único turco do grupo que se juntou esta noite na sala de Mustafa, é filho de sírios. Nos últimos meses, fez da sua carrinha de caixa aberta transporte ao serviço da revolução. Um dia pode ir buscar uma família à fronteira, no seguinte levar uma criança ao médico (oficialmente, todos os sírios vivem em campos mas alguns, como Mustafa, arriscam permanecer ilegais no país). "Se a fronteira estivesse aberta, e os sírios não a tivessem minado, chegavam mil refugiados por dia", diz Ibrahim. No dia seguinte à nossa visita - ou um dia depois, se a fronteira estivesse muito vigiada - seria Ibrahim a levar Taman até ao pedaço de terra por onde o "enviado de Hama" entrara na Turquia, uma semana antes.

Revolução dos pobres

"Vim com uma missão", diz Taman, calças e blazer de veludo cotelê, pasta castanha escura sempre por perto.

Taman é membro dos Comités Locais, os grupos que desde o início da revolução organizam as manifestações. "Vivia em Damasco, mas tive de voltar à minha terra e juntar-me à revolução", conta. Antes, Taman, 36 anos, casado e com quatro filhos, era professor de árabe num liceu da capital. Estudou "Língua Árabe, Gestão, Sharia [lei islâmica] e Educação", enumera.

"Assim que a revolução rebentou na Tunísia comecei a espalhar a palavra. Não fui só eu. Muitos estudaram a religião de Maomé, que fala de direitos populares, e fizeram o mesmo. Não tive medo de falar aos meus alunos", assegura. O medo para fazer o resto desapareceu com Deraa, em Março do ano passado, quando o regime prendeu e torturou 15 adolescentes por terem escrito "o povo quer a queda do regime" nas paredes da sua escola.

"Há algo de profundamente maldoso nisto. Há coisas que parecem não poder ser feitas por humanos...", diz Riaad. "Deve haver pessoas que desde pequenas são educadas para odiar os outros", ensaia Mustafa.

"Depois de Deraa explodimos. Começámos a manifestar-nos", afirma Taman, recuperando a palavra. "Escolhemos as pessoas para o comité e passámos a reunir-nos duas vezes por semana. A certa altura, decidimos fazer protestos diários. Cada dia numa vila." E os protestos foram crescendo. No Verão, o seu Comité Local, que representa 24 municípios rurais de Hama, ajudou a organizar a maior manifestação desta revolta, 900 mil pessoas juntas na cidade de Hama, a gritar contra o regime.

"No início, nem queríamos que o regime caísse. Só pedíamos mais liberdade. Mas a repressão foi dura." Hama, onde o pai do actual Presidente, Hafez al-Assad, matou pelo menos 10 mil pessoas na repressão a protestos sunitas, em 1982, já perdeu as contas aos mortos desta revolução.

Segundo Taman, só há três meses é que o seu Conselho Local passou a ter um "comité militar". "No início, um pequeno grupo ia para a zona que estivesse a ser atacada pelo regime. Há uns dois meses começámos a organizar-nos mais a sério, com armas e grupos em diferentes zonas", explica.

Agora, segundo Taman, os rebeldes de Hama "coordenam-se com os grupos armados até Idlib". E quantas pessoas tem Taman a lutar em Hama? "Essa é uma pergunta embaraçosa... Ninguém nos dá armas. Se nos dessem armas, todos os sírios lutariam."

Ora, chegámos ao assunto que trouxe Taman à Turquia. Numa semana, o representante de Hama esteve em Istambul, onde se reuniu com três membros do Conselho Nacional Sírio, uma espécie de "governo à espera" da queda do regime, e foi recebido pelo "número dois" da embaixada dos Estados Unidos. De regresso a Hatay, visitou dois campos de refugiados para falar com os generais desertores que ali vivem - e que, em teoria, comandam os rebeldes no terreno.

"A oposição no exílio está dividida, ocupada com conflitos políticos. Gastam muito dinheiro em viagens e em conferências. Enquanto isso, a Síria sangra." Taman não teve melhor sorte com os generais: "Alguns recebem dinheiro, mas a Hama não chega nada. Disseram que nos vão ajudar, mas não acreditei".

Como à Síria não chega nada, "as pessoas estão a vender carros, casas, jóias, até os frigoríficos, para financiar a revolução". "Cá fora é o silêncio. Lá dentro é a pobreza. Vemos os nossos amigos morrer diante dos nossos olhos e ninguém quer saber. A Rússia, a China, o Irão e o Hezbollah [libanês] ajudam o regime a matar os sírios. E nós? Somos humanos. Somos todos filhos do mesmo pai, Adão."

E o encontro na embaixada dos EUA? "Nada." Taman não esperava grande coisa.

"Desde o princípio, percebi que só podíamos contar connosco. A nossa revolução é a revolução dos pobres e dos tristes", descreve. "Assad é estúpido, mas não é louco. Ama ser Presidente e pensa que os sírios são seus escravos. O problema foi que o mundo lhe deu luz verde para nos matar. Revoltámo-nos contra Assad. Mas afinal temos de derrotar o mundo todo", suspira. Depois, garante: "Seremos livres, nem que seja mortos. Assad poderá andar por cima nas nossas campas, mas ainda haverá sírios a resistir."

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