A pintura de Gonçalo Pena ainda é uma pele

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Monstros, espectros, homens, mulheres, máquinas, índios. ATOL - Deuses Inúteis, de Gonçalo Pena, na ZDB, é uma exposição cheia de personagens e situações que propõem um relação material com o espectador.

O interior da Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, assemelha-se ao de um museu de arte pré-modernista. As salas estão escurecidas e há focos de luz vindos do chão. De cores quentes, as paredes realçam as formas e as cenas representadas nas telas. E em caixas iluminadas mostram-se máscaras, amuletos, armas, fotografias, peças escultóricas, desenhos. Estamos em ATOL - Deuses Inúteis, exposição de Gonçalo Pena que remata um trabalho de três anos com Natxo Checa, iniciado durante uma residência no espaço lisboeta. "Houve uma interação profunda com o Gonçalo", revela o curador. "Nos projectos com o Alexandre Estrela e o Gabriel Abrantes, promovi outros contextos geográficos onde os artistas pudessem criar. Neste caso, a viagem foi interior. Tentámos criar pontos de ligação, para uma expansão de leituras."

A ideia de um curador que se imiscui materialmente na exposição não inquieta Natxo Checa (foi ele que seleccionou o objectos): "É assim que entendo o trabalho de curadoria. Como um diálogo forte com o artista, não como a organização de um design. Tive sempre o direito de intervir e senti-me bem nesse papel". Para Gonçalo Pena, a presença dos objectos surge clara e válida: "Alargam sentidos e relacionam-se com as pinturas. Não domino todos os sentidos da minha pintura. Quando pinto, os significados vão evoluindo. Sou o meu próprio espectador. Por isso, possibilitar referentes exteriores é um acto legítimo".

É a pintura que está no centro de ATOL - Deuses Inúteis. Os objectos, embora considerados, apontam para ela. Não a ofuscam ou distraem. E a pintura de Gonçalo Pena, para quem não a conhece, continua cheia de acções, seres, cenas. E temas, um dos quais, sugere o artista, tem a ver com "a Europa, com a sua decadência ou perda de identidade e memória; daí os deuses inúteis, enquanto metáfora dos europeus". Ou o outro, representado no colonizado, no índio, no negro (ou no Caliban). Vemo-lo representado nas telas ou evocamo-lo nos artefactos originários da Oceânia, de Africa ou da América do Sul que Natxo Checa escolheu. Mas nada de leituras primitivistas. "Não há essa influência estilística ou formal no meu trabalho, como aconteceu no proto-cubismo", esclarece. "A construção das obras e os processos de citação surgem em relação com uma situação histórica, mas a partir de registos pictóricos da tradição europeia".

Assumidamente figurativa, esta pintura faz-se de referências difusas, a maioria das quais anteriores ao modernismo. Cita As Meninas, de Velázquez, ou O macaco pintor (1740), de Jean-Baptiste-Simeon Chardin. Permite intuir atmosferas próximas do romantismo alemão ou figuras e gestos alusivos a certas representações históricas de Jacques-Louis David. Mas o repertório usado por Gonçalo Pena estende-se para lá do século XIX e a outros campos da cultura visual: o expressionismo-abstracto, contemporâneos como a inglesa Cecily Brown ou os alemães Daniel Richter ou Neo Rauch, Jean Cocteau e o cinema fantástico e até os cartoons e a banda desenhada (no traço arredondado dos rostos e dos corpos). "É um estilo que resulta de expressividades, que é adquirido com as suas evoluções. Há momentos em que parece mais rebentado, noutros é mais apolíneo. Interessa-me a possibilidade de usar tudo, de sentir que não existe nada que me esteja vedado em termos pictóricos. Isso tem um valor muito importante".

Um órgão digestivo

As telas de Gonçalo Pena não são habitadas apenas por referências. Lá dentro também há personagens. Monstros, gárgulas, espectros, homens, mulheres, crianças, ostras gigantes, budas. Figuras que lembram Richelieu, Cristo ou Beethoven. É tentador identificar alegorias, mas o processo pictórico opera desvios, faz o olhar circular. Há elementos que levam a outros elementos e o estado físico da pintura participa dessa circularidade. A propósito de uma tela onde vemos uma máquina a expelir ossos, o artista sublinha: "Gosto de pensar a pintura como um órgão digestivo, que cospe, expele, vomita. Que passa de um estado gasoso a uma estado aquoso ou sólido. E não me refiro à matéria pictórica, mas à matéria pintada, como coisa representada. Quero que haja uma relação material com as coisas representadas."

O que vemos em ATOL - Deuses Inúteis não podia ser feito se não através da pintura, um meio que, reconhece Gonçalo Pena, é percebido como não tendo o vigor e a relevância de outros tempos. Mais, sempre que representa ou figura situações, é rejeitada como anacrónica ou conservadora. "A crítica à pintura é legítima. A sua época de ouro está ligada à Igreja e ao capital. Por outro lado, tem um valor que é exterior a isso tudo. Permite uma relação cutânea, íntima, imediata". É talvez essa relação que tem impelido o pintor a fazer viagens à Alemanha para comprar tintas e telas a preços mais acessíveis do que os que encontra em Portugal. "É uma forma de liberalizar o uso do material para pintar sem restrições e constrangimentos. A diferença de preços é imensa", assegura. "Faço o investimento e depois faço o que quero. O material é a grande questão de uma pintura. E na minha há uma vontade de identificação corporal do espectador com as pinturas".

Em termos de processos e estilo, não existem em Portugal muitos artistas comparáveis a Gonçalo Pena. Talvez Manuel João Vieira, Tiago Baptista e pouco mais. Como se explica esta quase solidão? "Há muita gente a pintar, mas falta um envolvimento histórico com a pintura, em termos de contextualização, reavaliação ou actualização do medium. A pintura a partir da fotografia é uma linha possível, mas redutora. É interessante em termos conceptuais, mas como programa é finito. Este é infinito. Para mim a pintura é um diálogo, uma confrontação com a História, com a vida, com a existência. É uma pele sobre a qual se escreve".

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