Cancro da mama mortal revela ser, já de início, um ecossistema em evolução

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O cancro da mama triplo negativo representa 16% dos casos de cancro da mama e é muito agressivo Paulo Ricca

Por que é que um mesmo tipo de cancro da mama pode reagir de forma tão diferente aos tratamentos? Por que é que alguns tumores são sensíveis às terapias, enquanto outros teimam em lhes resistir? Os resultados de uma equipa internacional liderada por dois portugueses, que são publicados esta quarta-feira online na revista Nature, desvendam o enigma.

Recorrendo a avançadas técnicas de sequenciação do ADN, mostram, pela primeira vez, que na altura do primeiro diagnóstico do cancro da mama dito “triplo negativo”, o tumor de cada doente já possui uma história “pessoal”, porque já sofreu, mesmo nesta fase muito inicial, uma evolução genética individualizada.

“A possibilidade de estudar e descodificar a diversidade [genética] de uma forma sistemática, em tumores nos doentes, está a revolucionar a capacidade de entender os tumores como miniecossistemas”, diz ao PÚBLICO Samuel Aparício, cientista português radicado no Canadá, onde trabalha na Agência do Cancro da Columbia Britânica em Vancôver — e co-autor principal, com Carlos Caldas, da Universidade de Cambridge, Reino Unido, dos resultados agora publicados.

Os cancros da mama triplo negativos são assim chamados porque as suas células não apresentam, à superfície, nenhum de três receptores habituais: o dos estrogénios e o da progesterona (as hormonas sexuais femininas) e o da herceptina, uma proteína também associada aos cancros da mama. Este tipo de cancro representa 16% dos casos, afecta sobretudo mulheres com menos de 40 anos e é particularmente agressivo. Para mais, os próprios cancros triplo negativos demonstram uma grande variabilidade, de doente para doente, na sua resposta aos tratamentos — cirurgia, quimioterapia, radioterapia — que lhes são aplicados.

Os cientistas sequenciaram agora o ADN de 104 tumores primários de cancro da mama triplo negativo e descobriram que eram todos diferentes. “No nosso estudo”, diz-nos Samuel Aparício, “a evolução presente em cada tumor, no momento do primeiro diagnóstico, revela uma grande variação entre doentes, embora do ponto vista clínico os tumores sejam considerados a mesma doença.” Isto permite explicar, segundo ele, por que é que a resposta dos cancros triplo negativos aos tratamentos é tão variável.

O futuro do tratamento do cancro passa portanto pela personalização das terapias? “Esperamos que sim e a possibilidade de perceber, eventualmente ao nível das células individuais, quais são os ‘clones’ [grupos de células descendentes de uma única célula] e as mutações que respondem [às terapias] em cada ecossistema será uma arma potente para estudar o impacto dessas terapias. Já estamos a trabalhar nessa direcção”, responde Samuel Aparício.

“Estamos a construir o mapa do cancro da mama”, diz-nos por seu lado Carlos Caldas, colega e amigo de longa data de Samuel Aparício, com quem trabalhou quando este último ainda estava em Cambridge — e com quem continua a colaborar estreitamente, apesar de haver hoje um oceano entre eles. “O facto de caracterizarmos todos os genes mutados num tumor é o primeiro passo na determinação dos padrões de mutações e das melhores terapias para combater a doença”, explica Carlos Caldas. “É como um código de barras do tumor, que também poderá servir para monitorizar a resposta do tumor à terapêutica”, através de análises ao sangue que detectem a quantidade de ADN mutado na circulação das doentes.

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