Simone de Beauvoir não apoia Oprah Winfrey

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Mohamed Abd El Ghany/Reuters

Nawal El Saadawi, a primeira mulher a disputar a presidência, em 2005, não votará em Bothaina Kamel, única candidata este ano. "Sem programas políticos, é como escolher entre um pénis e um clítoris", diz a feminista. "Recuar equivale à autodestruição", responde a antiga celebridade da TV

Em Setembro de 2005, Nawal El Saadawi abriu um precedente e tornou-se na primeira mulher a disputar o lugar de Mubarak em eleições presidenciais. A ousadia forçou-a ao exílio. Seria, pois, de esperar que, este ano, derrubado o ditador, ela apoiasse Bothaina Kamel, única mulher candidata à chefia do Estado, mas a psiquiatra, escritora e destacada feminista, a quem chamam "Simone de Beauvoir do Egipto", decidiu boicotar o que designa por "um jogo sujo".

"Ela não deveria participar neste jogo, mas está a acomodar-se a ele", diz Nawal El Saadawi, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, criticando a decisão de Bothaina Kamel, 50 anos, antiga celebridade televisiva venerada pelos seus partidários como "a mulher que vale 100 homens". Para a octogenária sem tabus que militou contra o rei Farouk, a ocupação britânica do Egipto e o raïs Anwar Sadat, "esta corrida presidencial [prevista para 23-24 de Maio, com segunda volta em 16-17 de Junho, se necessário] é como uma corrida de cavalos, e os concorrentes não estão lá pelo povo, e sim para garantir os seus interesses, poder e dinheiro - e ela deveria afastar-se".

Quando a inquirimos sobre a sua própria candidatura em 2005, Saadawi justifica: "Acima de tudo, eu queria desafiar Mubarak, expor a sua corrupção. Era também minha intenção denunciar a hipocrisia da democracia. A polícia andou sempre atrás de mim assim que registei o meu nome. Da minha parte, foi um gesto simbólico com o intuito de encorajar outras mulheres. Acabei por boicotar as eleições devido à perseguição policial, que impediu todos os meus comícios. Não desisti, porque cumpri os meus objectivos. Nunca quis ser presidente, apenas provar que, com Mubarak, a democracia era uma mentira. E, hoje, a democracia no Egipto continua a ser uma mentira."

"Sejamos francos: nenhum dos candidatos [o mais recente e inesperado, Khairat al-Shater, da Irmandade Muçulmana], homens e mulheres, tem um programa político e estas eleições não serão livres", insurge-se a destemida Saadawi, cuja volumosa cabeleira branca e olhar cintilante ajudaram a colorir os protestos na Praça Tahrir, no Cairo. "A minha escolha não pode ser entre um pénis e uma vagina, mas entre um e outro programa."

"Respeito muito a dra. Saadawi e concordo com ela quanto à possibilidade de fraude eleitoral, mas tenho um programa detalhado, redigido por pessoas qualificadas", responde Bothaina Kamel, em declarações ao PÚBLICO por email, sem especificar os pontos mais importantes do seu projecto. "Temos de lutar, porque permitir que o antigo regime se mantenha no poder seria equivalente a uma autodestruição. Este não é o momento de tomar posição e depois recuar."

Quando é que Bothaina Kamel decidiu deixar de ser "a Oprah Winfrey do Egipto", como a designaram os media americanos, para se dedicar à política? Não foi em 1998, quando o seu programa de rádio Confissões Nocturnas foi cancelado ao fim de seis anos, acusado pelas autoridades religiosas de "manchar a reputação do país e dos seus jovens", por abordar questões como homossexualidade e relações extraconjugais. A mudança aconteceu em 2005 - ano em que Saadawi concorreu - durante o referendo que emendou o Artigo 76 da Constituição, permitindo pela primeira vez eleições presidenciais directas com vários candidatos. A 25 de Maio, a locutora da televisão estatal andou pelas ruas e constatou que as secções de voto estavam quase vazias. Quando chegou ao estúdio, ao ver o alinhamento das notícias à sua frente, reparou que teria de anunciar uma afluência maciça às urnas. "Sabia que me estavam a pedir para ler uma mentira, por isso demiti-me", relembra.

Logo após o referendo, Bothaina Kamel ajudou a fundar um grupo para supervisionar as legislativas. Chamou-lhe Shayfeeen.com, que significa, em árabe coloquial, "Estamos de olho em vós". Isso não impediu os donos sauditas do canal por cabo Orbit de a convidarem para ser a estrela do talk show Por Favor Entende-me. Este manteve-se no ar durante dez anos até à queda de Mubarak, quando ela resolveu investigar "o dinheiro roubado" pelo Presidente deposto. Os executivos da estação, temendo que viesse a público o alegado envolvimento da Casa de Saud na transferência de fundos do aliado e protegido, cancelaram a emissão meia hora antes de ir para o ar.

Acampadas dia e noite na Praça Tahrir até Mubarak ser forçado a sair de cena, em 11 de Fevereiro de 2011, Bouthaina Kamel e Nawal El Saadawi continuam a marcar presença nos protestos contra o Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), que agora detém o poder. O que correu mal para que uma junta militar tenha substituído um ditador e 70% dos deputados do novo Parlamento sejam islamistas e salafistas? "Bem, isto acontece em todas as revoluções, tanto no Oriente como no Ocidente - há sempre uma contra-revolução", afirma Saadawi.

"O poder da contra-revolução no Egipto é interno e externo, porque o Egipto está colonizado pelos Estados Unidos, e desde Sadat que não é um país independente, mas uma colónia americana", acusa Saadawi. "É verdade que o Exército se virou contra Mubarak, mas precisava do corpo do regime para sobreviver, e nós estávamos tão extasiados por o ditador sair de cena que nos deixámos iludir. Os EUA, o CSFA, a Irmandade Muçulmana e a Arábia Saudita colaboram para fazer abortar a revolução. Não é verdade que a América esteja contra os fundamentalistas! Sempre disse que Bin Laden e George Bush eram gémeos."

Papel higiénico e eyeliner

Para a mais famosa feminista do mundo árabe, os islamistas e salafistas obtiveram uma maioria no Parlamento, "porque as eleições foram uma fraude". Nawal El Saadawi boicotou as legislativas e vai boicotar as presidenciais, "porque os resultados já estão definidos". Isso significa que está pessimista? "Nunca estou pessimista!", sublinha. "Sou sempre optimista, porque a esperança é poder. Cito um ditado: "O sucesso significa ir de fracasso em fracasso sem perder a esperança." Se começarmos com 50% de esperança, já percorremos metade do caminho. Tenho confiança na revolução. Sei que vamos vencer."

A confiança na vitória envolve, porém, risco de vida. "Todos nós estamos sob ameaça; podemos ser levados para a cadeia a qualquer momento, porque não temos protecção, mas eu, que posso viver em qualquer parte e tenho os meus [quase 50] livros traduzidos em mais de 30 línguas, decidi ficar no Egipto, ainda que me proíbam de dar aulas na universidade, de praticar medicina e de aparecer na televisão, e onde só posso escrever para um jornal da oposição", diz Saadawi, que Sadat condenou por "crimes contra o Estado", em 1981.

"Ser colocada numa prisão foi sufocante", recorda. "Todos os dias a guarda prisional chegava ao pé de mim e dizia: "É mais perigoso, para si, eu encontrar na cela papel e caneta do que uma arma. Não me rendi. Pedi ajuda a uma prostituta (muitas leram os meus livros) que era ajudante da guarda e nos trazia o pão. No dia seguinte e durante três meses, ela apareceu com rolo de papel e o seu eyeliner. Foi deste modo que escrevi Memórias da Prisão. Escondi tudo numa marmita colocada num buraco fundo escavado no chão. Os inspectores nunca descobriram. Salvei a minha vida. Três meses sem escrever uma linha e eu teria morrido."

Exibindo um colar com o crescente do islão e a cruz dos cristãos, uma pregadeira com a inscrição "Sou egípcia", um pin proclamando "Contra a corrupção" e uma pulseira com a legenda "Fazer da pobreza história", Bothaina Kamel admite que também ela corre perigo. "Já fui detida duas vezes, tive de comparecer perante um tribunal militar, fui apedrejada e o meu motorista agredido com um objecto cortante que se destinava a perfurar a minha cabeça, fui espancada e tenho sido vítima de insultos por parte de soldados." Os slogans que a ornamentam servem para "demonstrar que tudo é possível", refere a candidata muçulmana, consciente de que goza de maior simpatia entre as minorias como os coptas, os núbios e os beduínos, por denunciar publicamente o incitamento ao ódio religioso e confessional.

Bothaina Kamel nega que a sua campanha, comparada com a de Amr Moussa, antigo secretário-geral da Liga Árabe, tenha mais visibilidade externa do que interna. "As pessoas conhecem-me por estar ombro a ombro com elas nos protestos. Dizem-me sempre: "De todos os candidatos, só ela está connosco nas ruas." A diferença é que os outros estão melhor organizados e têm mais fundos."

Nawal Saadawi está a concluir um livro sobre os acontecimentos na Praça Tahrir pelos quais esperou "70 anos". Embora os problemas "sejam agora diferentes", será uma obra "cheia de esperança". Porque ela se define como "uma escritora internacional", uma "cidadã do mundo" que não acredita em "identidades restritas, seja de nacionalidade, classe, género ou religião." No exílio forçado por Mubarak, enquanto dava aulas em universidades prestigiadas como Harvard, separou-se do terceiro marido (e um dos seus tradutores) há quatro anos, porque ele, apesar de quatro décadas de vida em comum, "insistia em ser superior".

Um "cérebro patriarcal" é inaceitável para a mulher que aos 6 anos foi submetida à "ferida perpétua" da mutilação genital - uma tradição contra a qual se tornou uma activista acérrima; aos 10 travou um casamento forçado usando "um de muitos truques" (enegrecer os dentes e derramar café a ferver, por exemplo) para afugentar pretendentes; tomou a iniciativa de se divorciar do primeiro marido, quando ele se entregou à droga, e do segundo, quando ele lhe lançou um ultimato: ou és dona de casa ou médica. "Não tenho problemas com os homens - o meu problema é com a instituição do casamento!", declara com sonora gargalhada a autora de Women and Sex, obra em que afronta o establishment religioso. "Ser psiquiatra influenciou o meu pensamento feminista. Foi importante conhecer e dissecar o corpo, descobrir os órgãos genitais, a sexualidade. Eduquei-me a mim própria."

Bothaina Kamel também exulta com a sua transformação: "Já não me reconheço. Costumava ser uma "senhora da sociedade" que cuidava do cabelo, da maquilhagem, das unhas, ia ao ginásio e praticava ioga, conhecia a arte da boa vida. Agora, uso jeans, deixei de me pintar e como de tudo. A revolução derreteu as classes sociais - e isso foi uma das suas maravilhas."

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