Childish Gambino está no rap para ser rei

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É o alter-ego em forma de rapper do actor Donald Glover. "Camp", o seu primeiro álbum a ter edição física, não é uma excentricidade. Childish Gambino aponta alto

Na televisão, onde se destaca na série Community, ou nos espectáculos de stand-up comedy, Donald Glover é enérgico, adepto da comédia física e crente na virtude regeneradora do politicamente incorrecto. Enquanto Childish Gambino, alter-ego em forma de rapper que, depois de existência discreta em mixtapes e álbuns on-line, se estreou nas edições físicas, em Novembro, com Camp (a edição em Portugal aconteceu no início de Março), o padrão mantém-se: a produção cintila nas proximidades da galáxia Kanye West, enquanto rappa autobiografias ficcionadas sobre as miúdas excitadas com o seu sucesso, sobre o que é isso da autenticidade no hip-hop, sobre ser the only white rapper that can say the N word (que é ele, que não é branco), sobre a luxúria da fama e sobre crescer com a mãe nos bairros sociais.

Foi com esta informação e com imagens vistas no YouTube na cabeça que esperámos por Childish Gambino num café londrino nas proximidades do bairro trendy de Brick Lane. Um espaço acolhedor, qual sala de estar da década de 1970. Sofás retro, televisão muito antiga e obviamente desligada, rádio a passar clássicos dos Kinks, livros espalhados pelas prateleiras e bibelots espalhados por todo o lado. Ver naquele espaço Donald Glover/Childish Gambino daria um contraste interessante. Isto era o que pensávamos antes de ele chegar. Quando chegou, porém, não houve contraste. Parecia estar a precisar do descanso de um lar.

Viajava há três semanas pela Europa, entre concertos, entrevistas. Não dormia uma noite a sério há já não se lembrava quanto tempo. Energia zero: pálpebras pesando e ameaçando fechar-se, e a voz tão sumida que achou melhor pegar no nosso gravador para que as palavras não se evaporassem. Nada, contudo, que o fizesse perder a cortesia e a agilidade de pensamento durante a entrevista.

Humor e morte

Donald Glover, 28 anos, cresceu com os pais, uma irmã e um irmão num bairro social em Stone Mountain, na Geórgia, EUA. Teve uma infância "muito boa", com um senão. "Era um miúdo muito nervoso, sempre assustado com tudo. Seguia a minha mãe por todo o lado. E tinha medo de morrer, tinha medo de estragar tudo". O miúdo não é o homem. O homem diz que tudo o que faz é guiado pela vontade de deixar uma marca: "Se achas que não vais mudar nada, não faças".

Para o público, é um actor, um comediante ou um dos argumentistas de 30 Rock. A carreira musical, naturalmente, é vista como uma excentricidade ­- Mos Def ou Common são rappers e actores, mas fizeram o percurso inverso, o que faz, quanto a credibilidade, toda a diferença. Childish Gambino, camisa aos quadrados janota e calça de bom corte, com toda a coolness desejada pelas marcas de moda (a Gap já o "apanhou" para uma campanha), está a Leste de toda a conversa de credibilidade. Childish Gambino, diz, não é uma excentricidade. Faz música desde os dez anos. A primeira vez que actuou perante público, fê-lo enquanto músico, não enquanto actor ou comediante. Mais: "Nunca me vi enquanto rapper, actor, argumentista ou comediante. Não faço essa separação. Faço o que quero fazer, quando o quero fazer". Ainda assim, que não haja dúvidas. Este álbum chamado Camp pode não ambicionar mais do que ser "a representação de uma certa esquizofrenia que sentia quando tinha 13 anos", mas aponta alto. Não à modéstia: "Quero ser realeza do rap", dispara. À medida que o vamos ouvindo, percebemos melhor a natureza da sua ambição, esse desejo de "deixar marca".

Há um tema recorrente no seu discurso. A morte e o medo que provoca. "O humor existe para expressar o sentimento de impotência que todos sentimos perante o mundo", diz. "É por isso que existem tantas piadas sobre a morte. Todos sabemos que vamos morrer e todos o receamos. O humor ajuda-nos a lidar com essa inevitabilidade". Eis, então, por que razão o humor não deve impor-se limites. "Fazer humor sobre o Holocausto pode ajudar algumas pessoas a lidar com ele. Não devemos fingir que não há humor ali. Isso é agir como se não tivesse acontecido."

Não surpreende que o homem que elege Prince, Michael Jackson, Madonna, James Murphy e James Brown como maiores referências na música, e, no humor, "todos os grandes", que são Steve Martin, Chris Rock, Eddie Murphy, Richard Pryor, Lenny Bruce e Louis CK, veja os Odd Future, tal como Eminem antes deles, como divertidos. Sem polémica possível. "As pessoas precisam sempre de qualquer coisa que as deixe zangadas. Quando o Elvis apareceu não andava tudo a foder nas ruas, pois não? A sociedade só quer ser titilada. Só quer olhar e exclamar ‘oh, meu deus!'. É isso o YouTube. Pessoas a exclamarem ‘oh, meu deus!, não acredito que vi isto'. Mas ninguém quer realmente fazer aquele tipo de coisas. A maioria das pessoas é absolutamente normal. Só quer ter um tempinho em que possa fingir que não é, como os góticos nas suas festas. E isso é óptimo".

Donald Glover, licenciado em escrita criativa pela Universidade de Nova Iorque, começou por defender as suas credenciais enquanto rapper e a ambição de se tornar "realeza do rap". Fê-lo em respostas curtas e assertivas. Mas as respostas tornaram-se mais longas e mais interessadas quando mudámos de assunto. O humor, claro. "Acredito sinceramente que os tempos mais difíceis são melhores para o humor. Fazem com que olhemos para as coisas de um ângulo completamente diferente. A minha mãe cresceu pobre nos bairros sociais e foi daí que retirou o seu óptimo sentido de humor".

Há um momento em que ele se denuncia. Perguntamos-lhe se Camp, a autobiografia deste Childish Gambino tão parecido com Donald Glover, pode ser considerado um álbum conceptual. Começa por falar de Os 400 Golpes de Truffaut e da necessidade de o álbum ter uma certa qualidade cinematográfica. Confessa depois: "Não percebo o suficiente de música para responder a essa pergunta. Tentei apenas estruturá-lo enquanto história".

Se Childish Gambino chegar um dia a realeza do rap, os títulos irão sinalizar a surpresa: "O argumentista que se tornou rei do hip-hop". Seria uma grande história.

O Ípsilon viajou a convite da Coop

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