O acontecimento-Marx revisitado

O comunismo morreu, mas Marx continua vivo na ideia, actualíssima, de revolução

No bisonho panorama da contribuição portuguesa para o pensamento marxista, o livro de Sousa Dias, Grandeza de Marx. Por uma política do impossível, é desde já uma pedra branca. Com uma correcção prévia, porém: o que motiva ao autor a escrita deste livro, escrita cuja urgência se sente no fôlego por vezes torrencial de uma prosa sempre límpida e de um pensamento sem trunfos na manga, não é “o pensamento marxista”, nas suas inúmeras ramificações, mas sim o pensamento de Marx, ele mesmo. Percebendo-se esta diferença, percebe-se que a resposta à pergunta colocada no capítulo inicial - De que fracasso é o comunismo o nome? - em nada obsta à naturalidade com que se passa ao tópico do capítulo seguinte: Actualidade de Marx. Porque no que toca ao fracasso do comunismo, Sousa Dias não se perde em tergiversações: “Sem dúvida que o comunismo é hoje o nome de um fracasso, de um trauma insuportável”. Ponto decisivo, porém, “não há que lamentar, muito pelo contrário, mesmo de um ponto de vista marxista, o desaparecimento da face da Terra dos Estados ditos comunistas, o fim dos partidos comunistas tradicionais, a falência da política comunista marxista, ''marxista-leninista''. De facto, esse comunismo morreu, até mesmo onde formalmente sobrevive (China, Coreia do Norte, Cuba), e ainda bem que morreu, e com ele um certo marxismo, um certo Marx, um certo espírito de Marx”.

O elenco dos fracassos e equívocos do marxismo, vasto e minucioso, revela aliás um autor cuja ética intelectual (e política) não recua ante complexos ou incomodidades. Pois não pode ser outra a posição de quem deseja ressalvar Marx do cortejo de falácias, manipulações e crimes que fizeram com que o nome “comunismo”, “glorioso outrora, se tenha tornado um nome impossível, um nome inominável”. Resta saber o que pode ser hoje a actualidade de Marx. Sobre isso, Sousa Dias é taxativo: “A actualidade de Marx é a actualidade da Ideia de revolução comunista”. Porque não há marxismo sem esse “conceito crítico objectivo de uma cesura histórica a fazer sobre-vir por uma subjectividade proletária internacional”. A ideia comunista é pois inseparável, ontem e hoje, de uma noção de “Justiça imperativa, de uma Justiça por vir como um direito para lá do Direito”, de “uma democracia absoluta tal como já a sonhava Spinoza no século XVII”. Mas, na medida em que a realização histórica desta Ideia foi o que foi, poderia pensar-se que a actualidade de Marx seria agora a do filósofo, não a do economista e menos ainda a do político. Sousa Dias recusa essas tentativas de mutilação da “violência insurreccional desse pensamento”, afirmando, de novo em modo taxativo: “A actualidade teórica (filosófica) de Marx é a sua actualidade prática, a actualidade do seu imperativo revolucionário”.

Faz sentido que o livro se encontre dividido, no fundo, em dois grandes momentos: no primeiro, composto pelos três primeiros capítulos, trata-se de apresentar os fracassos do marxismo, a sistemática desleitura de Marx pela tradição marxista (e, em especial, pela traição que foi o “marxismo-leninismo”) e de anunciar O regresso da crítica da economia política (título do capítulo terceiro). Tal regresso seria uma exigência ante a “confiscação da política pela economia”, o devir-chinês da ordem económica neo-liberal mas também das democracias europeias e ocidentais, reduzidas cada vez mais à mera encenação formal de um jogo cujo resultado é de antemão previsível. No segundo, que abarca os capítulos quarto - Lógica do impossível - e quinto - A comunidade por vir -, concentra-se o essencial do pensamento do autor sobre aquilo que de Marx importa resgatar e actualizar. O quarto capítulo, o coração teórico do livro, interroga a “experiência do acontecimento”, ou seja, “a experiência da acontecibilidade do impossível”, a experiência “concreta, vivida, efectiva e não teorética, tudo menos abstracta, não só de que o impossível pode acontecer mas, mais ainda, de que, propriamente falando, só acontece o impossível”. Apesar das remissões para a lógica dos possíveis de Leibniz, percebe-se, aqui como no capítulo inicial, quando Sousa Dias elabora longamente em torno do tópico da espectralidade do comunismo, ou no capítulo final, quando se demora sobre a questão do messiânico ou do cunho não desconstruível da Justiça ante o Direito, que sem a sombra do Derrida de Espectros de Marx seria muito mais difícil pensar a actualidade deste Marx (embora omnipresentes, Zizek e Badiou contribuem muito mais discretamente para essa actualidade).

Uma política que, como na consigna de Maio 68, exija o impossível (e essa seria a única política justificável) não pode deixar de ser uma política do acontecimento, já que este “surge na história mas não da história. O acontecimento nunca é, nesse sentido, histórico”. O acontecimento - o excepcional, o sem medida e “sem razão”, enfim, a revolução - define-se por “uma relação ''crítica'' com a história” e desempenha, na economia da filosofia política deste Marx actualizado por Sousa Dias, um papel decisivo. Em rigor, o acontecimento introduz neste pensamento um sublime político, o sublime do momento instituinte do político, que Sousa Dias descreve e redescreve - “irredutível excedência”, intempestivo, devir-mundo -, ao mesmo tempo que lhe coloca um problema de gestão impossível. Porque a questão está em saber como pode uma política do impossível, da revolução, recolocar-se nos eixos do tempo histórico e enfrentar a historicidade enquanto repetição. Sousa Dias reconhece as agruras da questão e afirma que “todo o acontecimento, não obstante a sua absoluta novidade e excepcionalidade, implica por si mesmo a sua própria repetição”.

O problema persiste, e regressa ao longo do livro, por exemplo no enfrentamento da questão do Estado, que o autor reconhece não poder ser tratado nos termos do século XIX, já que se por um lado “''Estado comunista'' é um oxímoro, uma contradição nos termos”, por outro o sonho do não-Estado é cada vez mais difícil de conceber nas sociedades complexas em que vivemos. E por isso, quando Sousa Dias afirma, em termos rigorosamente comunistas, que “o que é público, o que é do Estado, não é comum, o comum só o é se auto-apropriado, se afirmado por si sem mediações”, o conflito estrutural entre uma versão sublime do político - o momento em que a vontade do comum emergiria sem qualquer mediação - e a versão contratual ou histórica regressa fatalmente. Resta saber se este não é o drama eterno do marxismo enquanto pensamento do impossível e, em simultâneo, injunção prática.

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