Não é o leite que é um alimento completo: é o galão

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Consideremos o galão. Mesmo os portugueses que gostam de beber leite frio e odeiam beber leite quente gostam de um galão.

Um galão é um termo de respeito militar. Não há cá meias de leite ou garotos ou cappucini armados em italianos. Um galão é uma força que se usa ao ombro.

O galão, entre nós, está na infância. Ou regrediu ultimamente. Apesar de ser quase sempre bom - o leite e o café, como o leite e o cacau, dão-se sempre bem, incompreensivelmente, como uma vaca turista a visitar leite fresco nos frutos fermentados dos trópicos.

Mas pense nas possibilidades. Quantos cafés há? Puros, da mesma quinta, são centenas.De quintas do mesmo país, misturados, são milhares. De lotes de variedades e países diferentes são milhões.

O segredo de um bom galão é um bom café. Mais secreto ainda: fazem-se bons galões com cafés assim-assim. Dantes, havia galões com café de saco (ou de filtro), que eram mais baratos e galões com café de máquina, que eram mais caros. O café espresso é uma invenção italiana. As máquinas são italianas. Reduzem o café a uma concentração queimadora e pressurosa que é agradável como um licor. É uma barbaridade que resulta bem quando é bem feita.

Por muito aceitáveis que sejam os cafés da Nespresso, não é possível tirar uma boa bica sem ser com uma das grandes máquinas profissionais que se usam nos cafés, pastelarias e restaurantes a sério. É por isso que os galões feitos em casa nunca são tão bons. Uma boa máquina, pequena, não custa menos de 2 mil euros. E as realmente boas custam muito mais. Se, mesmo assim, continuar interessado, consulte o coffeegeek.com, que é de confiança.

Não são os melhores cafés do mundo que ficam melhores quando são submetidos à violência de uma máquina espresso. Aliás, o melhor café é obtido por filtração. É um crime misturar um São Tomé Arábica com leite porque perde-se o gosto delicado do café. O melhor café para espresso - e logo para galões - é o de lote, de misturas de cafés, a que os italianos chamam miscela. O site que convém a quem se queira meter nessas aventuras é o home-barista.com.

O meu método é mais simples: lembre-se da melhor bica que já bebeu. Agora lembre-se da máquina que lá usam. Será uma máquina caríssima. Finalmente lembre-se de quem tira, com aquele café e aquela máquina, a melhor bica. É a esse barista que deve pedir um galão. Leve o leite - eu recomendo que leve o Vigor magro, meio-gordo e inteiro - e peça três galões. Escolha o leite que mais lhe agradar. Descobrirá o que é, para si, o melhor galão do mundo.

As melhores bicas que eu já bebi foram ambas em Roma - nas furiosamente rivais Tazza d"Oro e no Sant"Eustachio. Ambas vendem vários lotes através da Internet. Dizem que usam apenas cafés arábicas. Estamos a falar dos dois melhores cafés espresso do mundo. Levando o leite (que custa 90 cêntimos por litro e logo 9 cêntimos por dose) e o café (25 cêntimos) dirija-se ao café onde está a melhor máquina e o melhor tirador de bicas e peça para lhe fazerem um galão, pagando aquilo que geralmente custa (um euro).

Ficará deslumbrado. Porque se o galão ali já era bom, imagine como será com café melhor e leite fresco. Custar-lhe-á, essa maravilha, apenas mais 34 cêntimos. Isto com o melhor lote de Roma e o melhor leite de Portugal.

Não tendo Internet e sendo traidor à pátria, os melhores cafés em Portugal são os lotes mais caros da Illy, da Buondi e da Segafredo - todos italianos. Até a Lavazza é melhor do que as marcas portuguesas mais distintas. A bica é italiana, as máquinas são italianas, os lotes são feitos por italianos. As marcas portuguesas, no entanto, têm melhorado muito nos últimos tempos e as melhores são melhores do que as espanholas, francesas, alemãs, inglesas e por aí além.

Para se beber um bom galão em Portugal, das duas uma. Ou não se faz nada - e vai-se bebê-lo onde se bebem as melhores bicas. E até, em casos espúrios, onde a bica nem é assim tão boa, porque o galão é maior do que a soma das partes. Encerra um mistério. Ou então faz-se tudo - e leva-se o café e o leite ao estabelecimento com a melhor máquina e os melhores técnicos baristas.

Note-se que o café tem de ser fresco. Tem de ser torrado há menos de dois ou três dias (o ideal é acabado de torrar) e tem de ser moído mesmo antes de ser espremido. No máximo, dez minutos antes. O café é uma fruta e uma frescura -nunca nos podemos esquecer disso. O galão reflecte estas prioridades. O galão tem de ser novo em café e em leite - quando é velho, como geralmente é, ressente-se e enche- -se de amarguras e mofos.

Se não tem em casa uma máquina de torrefacção bem calibrada, capaz de tornar os grãos verdes de café em grãos torrados (eu passei anos com frigideiras e máquinas de pipocas, todos em vão) e um moinho de engrenagem (e não de lâminas laceradoras), mais vale desistir e entregar-se ao método que proponho.

Obtenha o café (em grão) e o leite. Quando chegar ao café em que confia, ofereça-os ao balcão, como se fossem oferecimentos. E pague o que pagaria se ali tivesse chegado de mãos vazias.

Ou então peça apenas o galão do costume. Nunca há-de ficar mal servido. A preguiça, num país que trabalha mais do que parece, talvez seja a menos má das virtudes.

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