Canções? Não. Poemas, diz Julia Holter,sobre Ekstasis, um álbum de ensaios pop.

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Este é o momento da americana Julia Holter. Depois de um primeiro álbum, Tragedy, lançado há pouco mais de meio ano, regressa com Ekstasis, disco soberbo que a coloca no panteão das mais estimulantes experimentalistas pop da actualidade.

É uma música sonhadora, flexível, de ecos e reverberações, violoncelos, caixas de ritmos e vozes alteradas digitalmente, algures entre a pop, a folk psicadélica, o jazz e a música de câmara. Às vezes ornamentada, outras vezes simplesmente esquelética, parece atravessar décadas, ou mesmo séculos, com uma sensibilidade desconcertante.

Se em disco é assim, em concerto ainda parece melhor, como o testemunham vários registos da internet, pelo que será um acontecimento a sua estreia em Portugal (26 de Junho em Guimarães e 27 em Lisboa). A partir de Los Angeles, via skype, Julia disponibilizou-se para uma conversa que começaria pelo pequeno-almoço, que tomava nesse momento.

"O pequeno-almoço é a minha refeição preferida do dia", diz, "é como se fosse ela a definir se o dia me vai correr bem ou não", acrescenta, enquanto lhe perguntamos se isso tem qualquer coisa de místico. Ri-se: "não, nada. É puro pragmatismo. As outras refeições do dia são obrigação. Esta é prazer. É o amanhecer, quando tudo volta a ser possível. Aliás, as minhas melodias podem evocar qualquer coisa de visual, ou um movimento de dança, ou comida, porque não?"

Erudição e instinto

Sim, porque não? Ao longo da conversa falará muito disso, daquilo que a música evoca, da intuição, da espontaneidade, do deixar-se levar pelos acontecimentos. O que não deixa de ser curioso porque quando lançou o primeiro álbum parte da imprensa ficou seduzida por ter tido uma formação académica clássica em composição. A partir daí colou-se-lhe à pele o epípedo de erudita. Percebe-se, mas ouvindo as canções com atenção percebe-se que nunca seguem uma estrutura regular, não possuem uma linha narrativa linear.

"Sou muito intuitiva na forma como abordo as canções, para cada uma existe um olhar diferenciado, não tenho método", esclarece. "Todas têm uma estrutura definida, claro, até porque ao vivo é importante que isso permaneça, mas em estúdio tento ao máximo deixar-me ir, para que a magia possa acontecer. Não forço nenhuma direcção. Nenhuma mesmo." E sem parar: "Foi muito bom poder estudar teoria da música, aprendi imenso, acima de tudo a confiar no meu instinto", declara entre risos.

Quando fala do seu estúdio pode imaginar-se um lugar sofisticado ou então, como é cada vez mais recorrente no panorama actual, um pequeno espaço caseiro com o mínimo de equipamento necessário para gravar. "A segunda hipótese", confirma. "A maior parte dos sons são gravados directamente dos instrumentos para o computador. Existe um grande risco em gravar assim, mas não me preocupo muito na verdade, prefiro concentrar-me mais nas ideias e em extrair um pouco de poesia daquilo que estou a fazer do que preocupar-me em gravar qualquer coisa imaculada. Não devo ser diferente de qualquer banda de garagem, embora todas as bandas de garagem soem iguais e não penso ser esse o meu caso... [risos]. Mas no futuro quero colaborar com pessoas que possam cuidar dessa parte."

Ela compôs, tocou e gravou o álbum na íntegra. Até as partes de violoncelo, apesar de não ser uma dotada tecnicamente. "Sei tocar algumas figuras básicas e depois recrio-as." O mesmo havia sucedido com Tragedy, baseado na tragédia grega clássica Hipólito de Eurípedes. O novo disco não envolve uma narrativa pré-definida, o que faz sentido, porque ambos foram registados na mesma altura. "Não tinha sentido compor dois discos que se assemelhassem. Também não se atropelam. Têm aspectos em comum, esse equilíbrio entre sons electrónicos e acústicos como o violoncelo, mas acabam por ser discos muito diferentes, apesar de criados no mesmo período temporal."

As canções de Tragedy estão mais dependentes umas das outras. Em Ekstasis é como se tivessem oportunidade de crescer por elas próprias. "São mais contidas, o que reforça essa ideia de se poderem expandir muito mais", diz, "até porque funcionando em conjunto, acabam por ser mais soltas."

Influências

A sua música é singular, mas como qualquer outra não é imune a influências. Laurie Anderson ou Meredith Monk são nomes quase sempre referidos quando se fala dela. Ela confessa que não percebe essas comparações, mas acaba por rir-se, desdramatizando. "Não vivo numa cave, isolada do mundo, claro que conheço a música de Laurie Anderson, gosto dela, até me sinto honrada que façam essas alusões, e também comprei um CD de Meredith Monk há algum tempo, que não ouvi muito, confesso. Todas as pessoas têm influências, mas não creio que no meu caso sejam directas ou óbvias."

E sem parar, continua: "gosto muito da obra de Robert Ashley, das óperas, da escrita automática, da forma como trabalha as vozes. A maior parte das pessoas que me começou a ligar a Laurie Anderson fê-lo porque eu disse que gostava de Robert Ashley que, claramente, tem pontos de ligação com Laurie Anderson. Gosto muito do trabalho dela, mas também sou muito inspirada por Brian Ferry - sou grande fã dos Roxy Music - ou por Robert Wyatt, que é alguém com uma estatura incomensurável. Cresci a ouvir Joni Mitchell e na adolescência comecei a tocar ao piano ouvindo Fiona Apple. Ou seja, tenho imensas influências femininas. Quando era mais nova tentava cantar como Tori Amos ou Billie Holiday e, nos anos 90, como alguns grupos de R&B como as TLC. Quer dizer, sou influenciada por coisas muito diferenciadas, de géneros muito díspares."

Mas as principais inspirações nem sequer provêm da música. A literatura, em particular a poesia, e o cinema, são até mais importantes, diz. No álbum existem algumas referências literárias (Virginia Woolf, Frank O"Hara) e cinematográficas (O Último Ano em Marienbaud de Resnais). Aliás, Julia gosta de pensar nas suas canções como poemas, "embora não goste de utilizar essa palavra", justifica. "São como pequenas entidades, qualquer coisa que existe para além dos discos, sintetizando um sentir ou ambiente como num poema."

Agora que acabou de editar o novo álbum, vai lançar-se à estrada. O mesmo é dizer que vai concretizar a sua primeira grande digressão, algo que a deixa apreensiva. "Tocar a minha música, noite após noite, assusta-me, mas, hey!, talvez me surpreenda", ri-se, acrescentando que viajar a seduz, mesmo se fica assustada com a ideia de não se sentir inspirada todas as noites. "Adoro estar em palco, mas preciso de sentir tudo à minha volta de forma precisa. Quando estou em palco tenho que sentir que posso ser transportada para outro espaço, não posso ser eu, Julia Holter, gosto de sentir que posso ser uma personagem, sair de mim."

Na aparência, a sua música não é fácil de recriar ao vivo. Possui muitas camadas e níveis de leitura. Mas nos registos da internet fica a ideia de que a multiplicidade de elementos acaba por ser recriada de forma excitante, com ela nos teclados, coadjuvada por bateria e violoncelo.

"O baterista e o violoncelista são fantásticos", justifica, explicando a forma como se foram entrosando ao longo dos últimos meses. "Conversámos sobre a estrutura dos temas, tentámos percebê-la e daí partimos para a interpretação, com novos arranjos, sem nos preocuparmos como soaria ou não em relação ao disco. Eles deram imenso de si e a sensação com que fico é que voltei a criar um outro disco na companhia de mais duas pessoas. Nunca tínhamos tocado juntos, tivemos um mês para nos adaptar antes do primeiro concerto em N.Y., e foi muito entusiasmante."

No final da conversa, perguntamos-lhe se alguma vez lhe terá ocorrido que o título em grego, Ekstasis, poderia vir a ser lido como uma alusão ao estupefaciente do mesmo nome. "Claro que não", diz, entre risos. "Para mim é qualquer coisa como sair de mim própria, é o oceano, é o céu, é música na minha cabeça, é um jardim de flores, é um mundo que não existe." Não é verdade. Esse mundo existe. Pelo menos nas suas canções.

Ver crítica de discos págs. 36 e segs.

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