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A intuição de que o "Bom Povo Português" e o mundo que lhe correspondia deixaram de existir é a grelha de análise desta incursão do geógrafo Álvaro Domingues no que ainda resta do campo NELSON GARRIDO

Ensaio

Do Bom Povo Português

Uma crónica da "desruralização" do país que aprofunda a indagação da identidade nacional iniciada em A Rua da Estrada.

Osvaldo Manuel Silvestre

Vida no Campo

Álvaro Domingues

Dafne

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Editado em 2009, A Rua da Estrada, primeiro painel da tetralogia de Álvaro Domingues sobre o Portugal contemporâneo, rapidamente se tornou uma obra epocal. Do lado do método usado, o impacto resultou seguramente do privilégio da fotografia na economia do livro. Uma fotografia a cores que, entre outras coisas, é por si só uma etnografia do cromatismo com que "a rua da estrada" manifesta toda a sua desinibição ante o superego do preto e branco (e, vá lá, o cinzento do betão) da arquitectura erudita dominante. A forma como os textos do autor enquadram tais fotos, não aspirando, aparentemente, a mais do que à condição de legendas situáveis algures entre um didactismo socrático e um resíduo de alegorismo benjaminiano, também ajudou.

Do lado da teoria, quer a admissão de uma perspectiva de "espectador participante" (Eu vivo neste trajecto é o título da introdução ao livro), quer a capacidade para descrever "sem preconceitos" essa "coisa mal-amada" e de "identidade flutuante" que é "a rua da estrada" enquanto operador cartográfico, antropológico e sociológico, mas também enquanto tropo de um país em transição da cidade para o urbano e do rural para aquilo que Domingues descreveu como o "transgénico", foi decisivo para o impacto do livro. O "transgénico", como o "kitado", enfim, a bricolage, que o autor vai buscar a Lévi-Strauss, permite-lhe estruturar a sua leitura do país a partir de coisas aparentemente pouco legíveis, porque desprovidas de sentido à luz de operadores cuja anomia, porém, A Rua da Estrada torna evidente: um sistema de signos identitários que Domingues demonstra, por evidência fotográfica, funcionarem hoje em regime de ready-made. Seguindo uma sugestão de Paul Virilio, podia-se descrever A Rua da Estrada como "um museu de acidentes", ocorrendo estes por efeito de colisões de sistemas e códigos em deslocamento tectónico e civilizacional, num processo em rigor incontrolável e que dispensa um sujeito responsabilizável (por exemplo, pelo seu "mau gosto").

Vida no Campo vem evidenciar que a tetralogia de Álvaro Domingues é uma obra cujos antecedentes são livros como O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, Pela Mão de Alice, de Boaventura de Sousa Santos, ou Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro. Ou seja, um "opus" maior de indagação da "identidade nacional", cujo operador central se desloca porém para a paisagem, o que o poderia aproximar de Orlando Ribeiro, mas de facto o afasta, já que a paisagem deste é agregada por Domingues a uma representação cultural e ideológica produzida também, no século XX, por grande parte dos antropólogos e escritores portugueses, de direita ou esquerda, e que é desmi(s)tificada de forma sistemática ao longo de todo o livro. A matriz dessa representação, em rigor, é romântica, vivendo "mais de mitologias do que de arqueologias" (p. 235), ou seja, da "invenção" sistémica, na longa duração, de um "bom povo" português, face à qual nos situaríamos hoje num tempo póstumo. Mas também num tempo de luto irrealizado: a intuição empírica de que esse povo e esse mundo deixaram de existir - em função daquilo a que o autor chama "desruralização" e que tão bem descreve - não se traduziria se não em melancolia pela perda do único fundamento estável num tempo em que o que é sólido se parece dissolver, de vez, no ar.

Só na aparência o livro segue o modelo de A Rua da Estrada, já que a economia da relação texto-fotografia se alterou significativamente. Este é um livro de texto "com ilustração", o que significa que agora a teoria vem primeiro. Uma assinalável energia teórica percorre estas páginas e a "ilustração" é agora também literária, recorrendo-se quer a poemas, quer a excertos de romances, para lá do nosso arquivo antropológico e histórico. O livro produz no leitor um efeito menos eufórico do que o anterior (estamos mais longe do modelo de Learning from Las Vegas) e a hermenêutica da suspeita lançada sobre a oposição categorial puro / impuro, estruturante de todo o livro, revela-se, por vezes, fatigante. Mas, sobretudo, essa hermenêutica evidencia toda a sua filiação moderna, na medida em que o revisionismo que activa se esforça por persuadir-nos de que o "idílio campestre" de um povo entregue à sua "nobre pobreza" só existiu enquanto representação - a "idiotice da vida rural", como diria Marx, mistificada.

Esta posição suscita vários problemas, não empíricos (o conteúdo empírico das representações não está em pauta) mas teóricos. Um exemplo maior: a necessidade que Domingues sente de submeter ao crivo do seu revisionismo, não apenas as representações do mundo rural, mas também os agentes dessas representações: a elite que pensa o povo e o representa submisso e feliz. Nos dois últimos capítulos, o tópico de que se trata de "um povo inventado por alguém que lhe é exterior" (p. 257) conduz a um "jogo de massacre" sobre a elite e a "cultura erudita" com as armas de arremesso fornecidas por Bourdieu, Estudos Culturais, etc. O ponto crítico desta encenação de um combate que recupera estrategicamente um "Bom Povo" (e um romantismo, já agora) por outras vias, é aquele momento, pré-final, em que o autor nos diz que "Enquanto as culturas cultivadas e as elites necessitam de mecanismos e rituais de legitimação e auto-reconhecimento... a cultura popular basta-se a si própria" (p. 266). O problema é que, assim como a Natureza não cresce nas árvores, mas sim as maçãs, também a "cultura popular" se basta tão pouco a si própria como qualquer outra... O que Domingues reconhece logo a seguir quando sente a necessidade de qualificar essa cultura face à "cultura de massas" que hoje a transforma numa "pequena cultura popular" (p. 267). Como se não fosse possível dar notícias da antiguidade ideológica (do "Bom Povo") sem voltar a cair, ainda que em modalidade revisionista, no círculo mágico dessa ideologia infinitamente dialéctica.

Ficção

Morte no pântano

Patrícia Melo trocou a selva urbana pela exuberância natural do Pantanal.

Rui Lagartinho

Ladrão de Cadáveres

Patrícia Melo

Quetzal

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Da paisagem do Pantanal brasileiro espera-se uma luz brilhante. Ofuscante e calorosa, potenciadora de alegria. Em Ladrão de Cadáveres quando chegamos a Corumbá "chafurdamos no calor", mas a bondade da luz já lá não está. Dir-se-ia quase apagada. Pressentimos que Patrícia Melo usou este efeito para se sentir mais confortável, ela que carregava até aqui nos seus romances a sujidade das grandes urbes brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro.

Em Corumbá, esse fardo vai sair-lhe de cima, juntamente com aquele que ainda a atava aos códigos do romance policial e negro na sua versão mais restrita, aquela que os liga à fantasia e os afasta da realidade - no sentido em que a vertigem delirante das acções pode estar apenas na cabeça de quem as imagina. Um exercício já testado com sucesso nalguns dos romances mais conhecidos da autora de O Matador.

Isso não acontece neste seu décimo livro, o primeiro editado em Portugal pela Quetzal. Em Ladrão de Cadáveres, um gerente de tele-marketing de São Paulo foge para Corumbá depois de não ter conseguido evitar o suicídio de uma estagiária. A pequena localidade à beira do rio Paraguai, perto da Bolívia, é território de Carlão, o primo que o acolhe quando decide mudar de vida: "Se existe Deus, ele é o Pantanal. Temos de tudo, temos mata, temos cerrado, temos campos limpos, temos os pássaros mais lindos."

Mas, mesmo no paraíso, também há domingos entediantes. Para o nosso refugiado, é dia de pesca. E de um rio regurgitante de peixe espera-se tudo menos que uma avioneta se despenhe à frente dos nossos olhos. Lá dentro, o piloto jaz com uma enorme quantidade de cocaína encostada ao corpo. Os motores da avioneta param, o romance arranca. O pescador ocasional fica com a droga e a partir daqui não há escrúpulo que o detenha, não há moral que o trave.

Patrícia Melo serve-se dele para demonstrar que a bondade não é um sentimento inato ao homem. Há nesta personagem um toque de Rei Midas em relação às más acções que vai praticar. Todas vão ser recompensadas. Do tráfico de droga - o livro expõe o cartel da droga alimentado pela fronteira boliviana - à chantagem, ao roubo de cadáveres.

Para além do protagonista sem nome, há outra grande personagem de antologia que entra directamente para a galeria dos melhores heróis de Patrícia Melo. Chama-se Sulamita, namora o narrador, e é uma mulher em ascensão social. Numa terra parada no tempo, isso pode significar passar de técnica administrativa de uma esquadra de polícia a chefe do necrotério. Com Sulamita aprendemos uma regra de ouro para quem trabalha numa morgue, não enfrentar os olhos de um cadáver: "Mas quem disse que eu consigo? Vou direto nos olhos. No rosto. Não consigo evitar, todo dia que venho para cá digo para mim mesma, hoje, sua burra, você não vai ver a cara de ninguém. Chego aqui e quando dou por mim, estou lá com os olhos cravados na cara do defunto."

Patrícia Melo roubou o título do seu romance a um conto de Robert Louis Stevenson. Mas se o ladrão de cadáveres do conto vitoriano alimentava com o seu tráfico o progresso da ciência, aqui no Pantanal os cadáveres limitam-se a servir de corpo presente para que alguns lutos se concretizem.

A dupla escabrosa consegue concretizar todos os seus planos. Ninguém os desmascara, até porque contrairia o sentido do caudal do rio em que Patrícia Melo nos faz navegar. Um leito que engrossa com todo o tipo de húmus vegetal e de cadáveres desagua numa impunidade natural: "Salumita tinha uma característica curiosa, era capaz de afundar na lama da sua própria vida, sucumbir no seu atoleiro particular, mas quando se tratava do lodaçal dos outros, pronto, ela crescia, ligava o seu trator e saía removendo e empurrando entulho com grande habilidade."

No final não será bem assim. Aqui e ali acendem-se lampejos de moral, da vida em São Paulo a que o narrador já não pode voltar e de outra no Rio de Janeiro que não pode começar.

Mas é sem remorsos que a autora o enterra no Pantanal. Uma terra que, descontadas as diferenças de paisagem e de filiação da autora, se assemelha ao Mississippi do dramaturgo Tennessee Williams (os negros pode ser trocados pelos índios): um território onde os vivos se vão enterrando voluntariamente.

Por entre os dedos

O vazio da vida, e um certo mal-estar moderno e urbano, num prometedor romance de estreia.

José Riço Direitinho

A Vida Passou Por Aqui

Luís Francisco

Oficina do Livro

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Um taxista que é esmurrado por um homem mais jovem, bem vestido ("um filho-da-puta tão perfeito que dá vontade de o desfazer, a falar bem, a olhar de cima para baixo"), e que depois de ferido se recusa a responder à chamada insistente da central telefónica, tudo isto enquanto pensa que não pode contar a verdade aos colegas, à mulher, que não quer que se saiba que não foram "uns cabo-verdianos com uma pistola"; um jovem arquitecto, Pedro, que está num restaurante com amigos (no meio de uma "conversa de merda de gajas e futebol") e que não consegue tirar da cabeça uma rapariga a quem deu boleia dias antes, num BMW emprestado, e insiste em ligar-lhe inúmeras vezes do telefone fixo do restaurante (o telemóvel já ficou sem bateria), mas ela não atende; ela é Lena, estudante universitária que acaba de terminar uma relação clandestina (durou anos e sente agora na vida um enorme vazio) com um homem casado e filha de Jaime, o taxista; Jorge, outro arquitecto, amigo de Pedro, dono do BMW emprestado ao amigo, gaba-se de não lhe interessar "ver mais longe do que a ressaca da manhã", sedutor em festas nocturnas, arrogante e cheio de si próprio, não compreende que "isto chegou a um ponto em que já nem se pode acender um cigarro num táxi sem os gajos começarem logo a espingardar", por isso esmurrou Jaime; Joana trabalha na central telefónica da empresa de táxis, é maltratada pelo patrão, tem um filho pequeno, é viúva de um toxicodependente, levanta-se todos os dias às cinco da manhã e chega a casa quando a noite cai; Isaura, mãe de Lena e mulher de Jaime, o taxista, foi empregada doméstica em casa de Raul até este a acusar injustamente de um roubo; Carlos, toxicodependente, rouba carteiras no Metro e quando a oportunidade surge não hesita em abrir um carro para retirar uma mala lá deixada, indignando-se com o facto de lhe chamarem viciado enquanto os que fumam e são dependentes de álcool e de café "têm hábitos recreativos de consumo"; Laura, solteirona e irmã de Carlos, espera que ainda lhe apareça o grande amor da sua vida.

É a partir desta extraordinária (ao mesmo tempo, e de outra forma, também banal) galeria de personagens que o jornalista do PÚBLICO Luís Francisco (n. 1964) tece a trama do seu romance de estreia, A Vida Passou Por Aqui. É uma narrativa polifónica, bem arquitectada, em que os vários narradores vão contando, à vez, a sua parte da história, ou antes, a sua história. Feita de partes que vão tecendo devagar uma quase inesperada teia, em que tudo e todos se começam a cruzar depois de resolvida meia-dúzia de nós. É caso para dizer, como na canção de Sérgio Godinho, "isto anda tudo ligado". São histórias banais de pessoas banais, que pouco a pouco se apercebem do vazio em que vivem, de que as suas vidas foram sendo deixadas por elas próprias para segundo plano em troca de qualquer coisa que já não percebem o que é, vidas que lhes fugiram por entre os dedos sem eles se terem apercebido (ou ter querido aperceber), vidas que ficaram cobertas por uma capa que nada tem a ver com o que sentem. Há um "mal-estar moderno e urbano" que alastrou por toda esta teia de personagens, por pobres e por ricos; os únicos que ainda têm esperança de recuperar essa "vida", a tal "que passou por aqui", são Jaime e Isaura, os pais de Lena, que decidem voltar para o campo de onde há muitos anos saíram, voltar para a "casa velha e para as árvores do quintal".

O ritmo da narração, o voltear lento dos pensamentos, a imagética parecem influenciados pelos primeiros livros de Lobo Antunes, como neste exemplo quase ao acaso: "(...) a comida dos peixes a boiar à tona de água, à espera de uma boca esfomeada, afundando-se lentamente os bocadinhos que escapam, sobreviventes para quê, para apodrecerem nas pedras do fundo, que hei-de lavar um dia destes enquanto juro que é a última vez, que a Lena é que os quis comprar e agora há anos que os deixou para aqui (...)" (p. 43)

Este romance de estreia de Luís Francisco é uma cuidada "festa de oralidade", recheada de palavras precisas e de frases talhadas a preceito para cada personagem, e tudo assente num singular poder de observação, quer de tiques quer de expressões.

Fotografia

A fotografia é memória

Daniel Blaufuks e a resistência ao esquecimento, numa antologia de antologia.

Nuno Crespo

Works on Memory. Selected writings and images

Daniel Blaufuks

Ffotogallery

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A antologia de textos e imagens Works on Memory resulta de uma exposição com o mesmo título, comissariada por Filipa Oliveira na Ffotogallery, em Cardiff, entre Janeiro e Fevereiro de 2012.

No essencial, o livro é sobre o modo como o trabalho de Daniel Blaufuks explora as diferentes modalidades da memória, ou seja, o modo como, na contemporaneidade, a comunidade humana recorda e organiza os materiais da recordação. Não é só uma pesquisa acerca do modo humano de honrar o presente impedindo o seu total desvanescimento num irreconhecível e indizível, mas também uma investigação sobre as diferentes maneiras de organizar esse conhecimento: o arquivo, o álbum, o relato. Os vários textos e imagens deste livro dão conta desse caudal que, subterraneamente, percorre todo o território explorado pelas fotos, pelos livros e pelos filmes do artista.

Como síntese, pode dizer-se que "Blaufuks é um artista fascinado com o processo da memória - como é que construímos sentido nas nossas vidas através de detalhes e vestígios, a partir dos resíduos mentais e das imagens póstumas da nossa existência quotidiana" (D. Brake, p. 4). Esta apresentação da memória implica um trabalho de minuciosa recolha dos vestígios e de observação dos resíduos que o tempo produz. Uma descrição da qual emerge o fotógrafo como uma espécie de caçador que, no meio da floresta, segue as pegadas de uma presa: seguir pegadas é uma tarefa complexa, implica observar, identificar os sinais correctos, saber ler e reconstruir a partir de vestígios materiais um acontecimento mundano, uma acção, uma experiência.

Seguir a memória não é uma actividade contemplativa ou meditativa, mas implica uma batalha permanente. Primeiro contra o esquecimento e contra o abandono das imagens e das palavras a que se está sempre sujeito, depois uma batalha contra os limites da memória, ou seja, uma batalha pelo reconhecimento daquilo que não se pode esquecer. Escreve David Brake: "Alguns dos objectos que Blaufuks fotografa existem para nos lembrar que a nossa memória é limitada, que necessitamos de imagens e de recursos para podermos recordar o nosso passado e, talvez, para poder experienciar o nosso presente" (p. 6). Uma ideia de esquecimento reforçada por Mark Burden, que no seu texto recorda a citação de John Berger feita por Blaufuks no livro O Arquivo: "Todas as fotografias existem para nos recordar que nos esquecemos". É contra este esquecimento, que é uma forma de silenciamento e de invisibilidade, que se erguem as imagens do fotógrafo.

Estão em causa, por um lado, trabalhos sobre as texturas e asprofundidades da memória, como sublinha o artista: "No coração de cada projecto que faço está o meu interesse na memória e no modo como lidamos com ela" (p. 23); mas por outro lado os seus trabalhos, como lembra Filipa Oliveira, levantam o intenso e complexo problema dos sistemas e modalidades da memória e do arquivo. Diz Daniel Blaufuks numa extraordinária conversa com David Brake: "Estou interessado nas diferentes possibilidades de mostrar imagens" (p. 22), Estas palavras implicam uma procura constante pelo melhor modo não de exibir fotografia, mas de construir o acesso a uma experiência e a um outro tempo. Uma procura que parece indicar tratar-se para Blaufuks não tanto da questão da imagem artística bem conseguida, mas da reconstrução de uma experiência que de outro modo ficaria perdida. Diz o artista: "Eu trabalho porque quero compreender melhor alguma coisa" (p. 41). Para logo acrescentar que "a fotografia não é acerca da beleza ou do bem feito, mas acerca do sentido da imagem, quer a imagem seja um documento, um fragmento poético ou ambas as coisas" (p. 42). Por isso, recorre a vocábulos como álbum ou arquivo e o seu trabalho é o permanente trabalho de desenvolvimento dessa memória.

Estes aspectos recordam a tensão característica da prática da fotografia "entre ser documento e ser obra de arte", como reflecte David Campany (p. 28): "Não consigo separar os teus trabalhos das outras coisas que deles ganho: o desafio intelectual, uma provocação, uma meditação filosófica, uma revisão da história, etc." (p. 43) Olhar assim para o trabalho de Blaufuks implica não ficar refém da beleza de certas imagens (prisioneiro de um fetichismo da imagem tão comentado pela nova teoria da fotografia) e pela poesia que algumas delas parecem sugerir, mas aceitar a experiência da reconstrução de um tempo, de um sentido e de uma experiência. E este é o sentido mais profundo do seu trabalho: a construção de uma prosa cinemática. Diz o fotógrafo: "Eu não estou interessado na singularidade da imagem, mas na sequência ou fluxo de imagens, numa espécie de prosa cinemática" (p. 25).

Paralelamente ao percurso pelo trabalho deste importante autor, esta edição tem a felicidade de reproduzir um conjunto de textos que são um muito inteligente acesso ao conjunto da obra do artista. O formato de livro de bolso, muito diferente das habituais luxuosas edições de fotografia, e as reproduções a preto e branco não traem os trabalhos; antes evidenciam tratar-se de uma obra que vive não da construção da imagem, mas de um sentido. O trabalho de Blaufuks, longe das fascinantes tecnologias contemporâneas, resiste e permanece pertinente e actuante.

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