A troika já proibiu a humanidade?

Condenar à fome os refugiados que pedem ajuda ao Estado é descer mais um degrau na escala da abjecção

Penso que foi logo a seguir ao 25 de Abril, mas é possível que seja uma memória reconstruída. Seja como for, é assim que me lembro. Naquele tempo de entusiasmo e sedução, de paixão e de riso, onde se deixou de ter esperança porque não era preciso, porque o futuro estava ali mesmo à nossa frente para nós o fazermos como o quiséssemos, à medida de todos os sonhos (como diz Steiner que aconteceu à seguir à Revolução Francesa, quando o futuro passou a ser "lundi matin"), sonhei, como todos sonhámos, outro país. Ao contrário do de antes, diferente do de então, muito diferente do de hoje. Eram ideias soltas mas ideias fortes, coisas importantes que queria para todos os países e que me parecia que podiam muito bem começar pelo meu país.

Uma dessas ideias era o conceito de que Portugal se devia dedicar à Paz. Tenho a certeza de que nunca avancei esta ideia em nenhuma discussão política, pois a época também se caracterizou por alguma tacanhez, principalmente nas discussões políticas, e "idealista" era então um insulto usado em muitos círculos, de que eu tinha ouvido mais do que a minha quota-parte.

Eu não queria apenas que Portugal fosse um país em paz - tínhamos acabado de sair de uma guerra injusta, desonrosa e estúpida - mas queria um país dedicado à paz, como outros se dedicam a fazer relógios. E esta ideia, de que o país devia explorar a "fileira" da paz, como poderia dizer um economista, nunca me abandonou. Portugal, país de fronteiras, de sol e mar e poliglotas, parecia-me ter todas as condições para se especializar na paz, na arte do encontro, da conversa, da descoberta, da negociação, na alegria da diferença. Era (e é) em verdadeira especialização que eu pensava, como se se tratasse de divisão internacional do trabalho. Esta especialização na paz, copiada em parte dos países nórdicos e da Noruega em particular (honra à Noruega) deveria traduzir-se num investimento em investigação e em cursos específicos (internacionais, transculturais), na produção de estudos e documentos sobre prevenção e resolução de conflitos, mas deveria traduzir- -se também na disponibilidade de Portugal para lançar e participar em missões de paz em todo o mundo, contribuindo não apenas para desenvolver conhecimento no domínio da resolução de conflitos e das razões dos conflitos mas para criar uma rede global de contactos capaz de ajudar a cerzir as difíceis relações de confiança entre antagonistas. Da mesma forma como há equipas militares preparadas para fazer a guerra e para serem enviadas para qualquer parte do mundo a todo o momento, Portugal deveria ter equipas de especialistas preparados para ser enviados para fazer a paz. Seria a sua contribuição, como outros países treinam equipas cinotécnicas para enviar em missões de socorro depois dos sismos.

Imaginava Portugal como o lugar por excelência de encontros discretos entre partes desavindas de todo o mundo, o lugar onde equipas de homens e mulheres determinados e conhecedores conseguiriam negociar armistícios, sugerir contrapartidas, forjar acordos, dar uma oportunidade à paz. E, claro, imaginava Portugal como o país de acolhimento por excelência. O país do asilo político, como a França ou a Suíça ou a Suécia o foram para tantos portugueses no tempo da ditadura e da Guerra Colonial. Não se tratava apenas de um dever humanitário mas, mais uma vez, de uma componente da aposta na paz. A paz nasce da confiança e a confiança do conhecimento, e era preciso que Portugal fosse o ponto de cruzamento de todos os que fugiam da guerra, da violência e da tortura. Era preciso que se pudessem encontrar em paz, aqui, todos os que ali tinham feito a guerra e sentido os seus horrores. E quantos dos refugiados em Portugal não poderiam ter um papel fundamental na construção da paz e da democracia nos seus países?

E, para quem quisesse fazer contas e pôr um número na paz, haveria melhor investimento? A paz pode ser mais difícil, mas sai certamente mais barata do que a guerra. Uns cursos? Uns estudos? Umas viagens? Umas casas de acolhimento? Um chá tomado ao pôr do Sol? Um aperto de mão é mais barato do que uma bala.

É por causa deste sonho que me parece particularmente triste a notícia de que o Conselho Português para os Refugiados não possui neste momento sequer dinheiro para dar de comer aos 125 refugiados que apoia, porque o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia não parecem interessados em satisfazer as suas necessidades básicas.

Que um país como Portugal, com a sua história de pobreza e guerra e ditadura, não perceba as necessidades destas famílias, que fugiram a perseguições e a quem prometeu asilo, é inaceitável. Alguém poderá explicar a Pedro Mota Soares e Miguel Macedo que temos de alimentar estas pessoas?

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