Alemanha elege um Presidente de paradoxos, Joachim Gauck

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Gauck é o candidato do consenso,mas espera-se que seja por vezes controverso Thomas Peter/Reuters

Joachim Gauck foi hoje, sem surpresas, eleito pela assembleia especial que escolhe o Presidente na Alemanha. Será o primeiro presidente alemão que não pertence a nenhum partido, mas tem fortes posições políticas. Era o candidato do consenso, mas a imprensa alemã antecipa que vá ser "alguém que irrita".

Gauck é conhecido por ter opiniões fortes e não ter qualquer problema em as dizer claramente. A sua orientação política é de difícil definição e encerra, também ela, as suas contradições: Gauck descreve-se como um “conservador liberal de esquerda”, mas apesar de um dos seus principais apoios vir justamente do Partido Liberal, muitos comentadores políticos sublinham a sua faceta conservadora.

Gauck defende intervenção do Estado; alguns alemães dizem, no entanto, que não é suficientemente “social”, já que concordou com as reduções dos subsídios sociais da era Schröeder. É um defensor do activismo cívico mas é muito crítico do movimento Occupy Wall Street que tem, em sua opinião, um anti-capitalismo “incrivelmente tonto”.

Muitos comentadores alemães suspiraram de alívio ao ver alguém com “fortes valores morais” substituir um Presidente que demorou demasiado a admitir os seus erros e que só se afastou quando formalmente indiciado por suspeitas de favoritismo e corrupção. Gauck conseguiu obter o apoio entusiástico da imprensa popular (Bild) e de qualidade (Der Spiegel).

Poderá viver com a companheira no palácio de Bellevue?

Isso não o deixa a salvo de escrutínio, e muitos críticos afiam já as unhas para o atacar. Surgiram até questões sobre a sua vida pessoal: poderia Gauck, a “bússola moral” da nação, mudar-se para o Palácio de Bellevue com a sua companheira de há mais de dez anos enquanto ainda está casado com a sua primeira mulher, de quem se separou mas nunca se divorciou?


As posições de Gauck, antigo pastor luterano de 72 anos cujo cargo definidor foi a liderança da comissão que geriu os arquivos da Stasi (a polícia política da ex-RDA) são imprevisíveis. Quando foi anunciado que seria ele o candidato do consenso partidário (excepto do partido Die Linke, A Esquerda, com origens no antigo partido único da antiga RDA), o semanário Die Zeit publicou um artigo com o título “o que ele defende”, revisitando recentes polémicas que despertou.

Liberdade, liberdade, liberdade

Mas se a sua opinião em muitos temas (já lá vamos) pode ser imprevisível, o tema que o apaixona não é: liberdade, é disso que ele não se cansa de falar.


A razão não é difícil de perceber: basta pensar nas várias vezes que a liberdade lhe foi recusada. Poderá dizer-se que a primeira vez foi quando tinha 11 anos e viu o seu pai ser levado da cidade báltica de Rostock, onde vivia, pelas forças soviéticas, sem poder dar uma palavra à família, que nunca soube onde ele estava até ao seu regresso. Acusado de espionagem, foi condenado a duas penas de 25 anos de prisão. Passou quatro num gulag. Quando regressou a casa estava magro, vinha diferente.

A falta de liberdade custou mais tarde a Gauck uma nova divisão da família: dois dos seus quatro filhos queriam ir viver na Alemanha Ocidental, e um dia conseguiram as autorizações. Um deles queria estudar medicina, algo que não podia fazer no Leste por razões políticas, e na parte ocidental conseguiu. Hoje esse filho, Christian Gauck, trabalha como especialista em ortopédica em Hamburgo.

Pastor, a única profissão possível

O próprio Joachim Gauck também não conseguiu escolher o seu futuro. A ideia de estudar língua e literatura Alemã com o sonho de vir a ser jornalista ou escritor não se podia concretizar (na Alemanha de Leste as famílias que não pertencessem ao partido único, ou os jovens que não pertencessem à associação de juventude comunista, viam ser-lhes negada a possibilidade de educação), por isso escolheu estudar teologia em 1958 (a Igreja era um espaço de relativa liberdade na Alemanha de Leste) e em 1965 começou o seu trabalho como pastor luterano.


Mas embora algumas posições políticas de Gauck possam ter raízes na sua experiência enquanto cidadão de um regime comunista (achar que nada se resolve nacionalizando os bancos, por exemplo, na sua crítica ao Occupy Wall Street), ele chegou a descrever o perigo de idealizar a liberdade ocidental. “O Ocidente era como uma mulher que um jovem de 17 anos poderia pôr num pedestal e adorar. Muitos de nós não víamos, ou víamos como se olhássemos através de um véu, as rugas e os abismos, as deficiências e as restrições da liberdade.”

Um anticomunista irreformável

Gauck usou o púlpito para falar de direitos humanos, direitos civis – críticas suficientes para a o pôr sob o radar da Stasi, polícia política da ex-RDA, que o classificou como “anticomunista irreformável”, mas não demasiado contundentes para levarem a represálias pessoais.


No ano de 1989 junta-se ao Neues Forum (Novo Fórum) o movimento de oposição ao regime, e depois da queda do muro é eleito para a assembleia na primeira votação livre da Alemanha de Leste. Nesse papel pede uma comissão que se encarregasse dos arquivos da Stasi, com informações detalhadas sobre a vida privada de vários cidadãos e também com as fichas dos colaboradores e de informadores. No total, entre 1950 e 1989, 274 mil pessoas foram funcionários da Stasi, que contou ainda com entre 500 mil a 2 milhões de “colaboradores informais”.

Resistiu a pedidos da Alemanha Ocidental cujas autoridades queriam tomar conta dos ficheiros; e de alguns na Alemanha de Leste que os queriam destruir. Percorreu o país, permitiu que quem quisesse ter acesso aos seus ficheiros o pudesse fazer; investigadores também poderiam consultar os arquivos. Desde que os arquivos foram abertos ao público, 2,8 milhões de pessoas fizeram pedidos para ver os seus ficheiros.

A organização ficou conhecida como “a agência de Gauck” até mesmo depois da sua saída, em 2000.

Depois disto, não quis voltar à igreja. Tinha conseguido uma grande projecção nacional com o modo como lidou com um assunto potencialmente explosivo que envolvia a procura de verdade e a necessidade de reconciliação. Com alguma vaidade, com alguma ambição (dizem os perfis na imprensa), Gauck esperou convites para cargos políticos. Mas em vão.

"Não sou o Super-Homem"

Quando os sociais-democratas e os verdes o sugeriram para a presidência em 2010, Gauck foi o protagonista de uma operação mediática com conferências e entrevistas. A chanceler Angela Merkel impôs o seu candidato. Que não venceu na primeira ronda de votos, nem na segunda… começou a haver alguma esperança para Gauck. Mas à terceira volta, Christian Wulff, um polido líder do governo regional da Baixa Saxónia, foi eleito – embora com humilhação para ele e para Merkel, a sua maior apoiante. As imagens não mentem: o rosto fechado de Gauck mostrava a desilusão. O candidato mais popular (mostravam as sondagens), e mais querido da imprensa (“O presidente dos corações”) não tinha conseguido vencer a maquinação política. Parecia que era uma miragem: quando ele chegou mesmo perto, o sonho desvaneceu-se.


Quando a nomeação finalmente chegou, mais de um ano e meio depois, Gauck sublinhou como é espantoso alguém como ele, “nascido durante uma guerra terrível e que viveu 50 anos numa ditadura, ser chamado hoje a tornar-se chefe de Estado”. Mas, consciente de que as expectativas estavam quase no máximo, acrescentou: “Mas eu não sou o Super-Homem, nem um homem sem defeitos”.

Um Presidente que chora

E que chefe de Estado será este? A especulação na imprensa é grande. As suas qualidades chave são o grande poder de oratória – num cargo que tem influência sobretudo pelo discurso – e uma moral a toda a prova – ninguém espera que se envolva em qualquer escândalo.


Sabe-se que é um homem que se emociona, que chora. Usa linguagem que ninguém usa na política, uma mistura de pregador com psiquiatra. É politicamente incorrecto e já admitiu que não segue um "trendy zeitgeist" (uma espécie de espírito dos tempos da moda). Antes mesmo de ser eleito já conseguiu irritar os sociais democratas falando de Thilo Sarrazin, o antigo membro do SPD que escreveu um manifesto dizendo que a grande presença de imigrantes está a tornar a Alemanha “mais burra” (apesar de não partilhar a tese, o autor é "corajoso”, disse Gauck) e os Verdes ao criticar a reviravolta da chanceler em relação ao nuclear (“parece-me algo caótico e desordenado”).

"Como permanecer autêntico?

Estas opiniões foram expressas por Joachim Gauck pré-presidência. Depois de ser eleito, tudo será diferente: “Já não serei o cidadão Gauck, serei a República Federal da Alemanha”. Ou seja, um desafio: “Tenho de trabalhar nisto e aceitar conselhos de outros”, disse. “Qual será a melhor maneira de continuar a ser autêntico e não parecer provocador?”


Sabe-se ainda que Gauck é alguém que tende a dar peso aos grandes valores (liberdade, democracia) e menos aos problemas do dia-a-dia (subsídios de desemprego, benefícios sociais).

Apesar de um mais intenso escrutínio mediático, continuará a não se preocupar muito com as aparências: nota a revista Spiegel que numa das últimas leituras da sua autobiografia apareceu com um saco de plástico “Campeonato de Futebol de 2006”.

Gauck é patriota, despudoradamente patriota num país que não lida bem com patriotismo. Mas não deixa de apontar os defeitos aos seus conterrâneos. O medo é parte da cultura nacional alemã, critica. “O alemão sente-se especialmente bem quando não se sente bem”, resumiu. O Presidente quer o fim desta angústia. Quer que os alemães se sintam bem e que deixem de ter medo de ter escolhas – de ter liberdade.

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