Pega Monstro. O país precisa de as ouvir abrir a boca

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Kolovrat 79. Torrentes de electricidade saídas da guitarra avançavam contra os corpos, liquefazendo melodias esculpidas com uma precisão imaculada. A bateria estrebuchava e atacava o esqueleto. Foi no sábado, na galeria Kolovrat 79, na apresentação de Pega Monstro

Duas irmãs, uma guitarra, uma bateria e canções punk-pop com riffs infecciosos, refrões com mel e um trato precioso da linguagem de rua. São as Pega Monstro e deviam pegar Portugal pelos cornos e virá-lo do avesso.

Quando no passado sábado os 45 minutos do concerto de apresentação do disco de estreia homónimo das Pega Monstro, no espaço Kolovrat 79, em Lisboa, chegaram ao fim, alguns, após as palmas e os berros da praxe, puderam suspirar de alívio: as moças tinham cumprido.

Foi um daqueles momentos a que umas dezenas de pessoas assistiram e que anos depois centenas dirão ter visto. Frases simples, como "Nada faz bem", berradas com as vísceras todas, arrepiaram. Torrentes de electricidade saídas da guitarra avançavam contra os corpos, liquefazendo melodias esculpidas com uma precisão imaculada. A bateria estrebuchava e atacava o esqueleto. Canções como Dom Docas foram cantadas por todas as santas alminhas. Na maravilhosa Akon, quando a melancolia dos acordes menores iniciais deu lugar a uma subida estonteante (guitarra furiosa, voz ao alto), a pele arrepiou-se, o BI perdeu metade da idade e a frase "O meu cão morreu e já não quero outro igual" pareceu a mais profunda das orações. De repente tínhamos todos 16 anos, e as próprias paredes da sala estavam suadas. Tínhamos levado uma tareia. Só que uma tareia com docinho, cortesia das melodias.

As Pega Monstro tinham estado mais do que à altura da esperança que alguma gente depositara nelas e nos seus companheiros de editora, a Cafetra, ao longo do último ano. Quem as defende diz que são das melhores coisinhas que aconteceram ao rock nacional nos últimos, bem, dois anos. Não só porque têm os riffs e as melodias mas também porque têm a atitude e as palavras: dão tudo em cada canção, mas nunca emanam pretensão; e têm um dom danado para a frase simples, de efeito.

Comercialmente, não chegarão às massas do pé para a mão. O melhor que podem esperar é dois milhares de discos vendidos se as coisas correrem bem, e a mesma exposição em termos de presenças em festivais que os Pontos Negros conseguiram há uns anos - apesar de as Pega Monstro serem uma banda mais difícil, porque mais de rua. Mas num certo sentido já alcançaram algo de impressionante: neste momento, gostar das 12 maravilhosas canções das Pega Monstro é fixe e há uma transversalidade social entre os fãs.

Há um ano, os Kimo Ameba, a segunda banda da Cafetra a editar (depois dos Passos em Volta e antes das Pega Monstro), iam dar concertos a liceus em Carcavelos ou no Pedro Nunes "em festas organizadas pela associação de estudantes em altura de eleições, porque a Maria [guitarrista e vocalista das Pega] estudava lá", conta Leio, o guitarrista dos Kimo. No sábado, entre quem se deslocara à galeria Kolovrat 79, em Lisboa, para assistir à apresentação de Pega Monstro, estavam artistas, gente da moda, pessoal das galerias, biólogos, tradutores, engenheiros. Gente sofisticada a milhas do universo de slackers ganzados semi-suburbanos que por norma se cola à Cafetra.

O formato estranho das Pega Monstro também terá uma quota-parte de responsabilidade no apelo da banda: só precisam de bateria e guitarra, tocadas por duas irmãs, a Júlia, de 20 anos, e a Maria, de 18. Um pouco antes do concerto, Júlia confessava que "isto [o interesse à volta delas] acontece por sermos irmãs". "Gostava que não fosse assim, mas o interesse à nossa volta é só pela história."

A humildade fica-lhe bem, mas é mais do que isso. Pares de irmãs há muitas e mais nenhumas põem dezenas de pessoas a repetir que "Há gajas que gostam de levar na boca", o refrão de Dom Docas, é "a frase do ano", como tem acontecido nos últimos dias, desde que as manas puseram o disco na Internet.

Mais importante do que qualquer história é o facto de terem trazido para o rock português a respiração das ruas, terem-no libertado de excessos de literacia e terem trazido para o microfone o mundo escondido dos putos.

Maria diz que as letras das Pega-Monstro são como são porque escreve como fala. "Soa mais verdadeiro se cantar como falo. Mas a musicalidade não é à toa, as sílabas estão todas contadas". Invariavelmente elas cantam sobre coisas mundanas mas esses temas escondem os pequenos mal-estares e angústias juvenis. O tom nunca é sombrio: há um humor e auto-irrisão típicos de quem desconfia dos seus dramas. Podem cantar sobre aftas, sobre chamar nomes, ou sobre a razão pela qual cantam (aproveitando para insultar quem não está com elas) que quase sempre têm graça. A inteligência destas letras revela-se na forma como usam camadas de significado, quando cantam sobre alimentação de uma forma que esconde um mal-estar maior. Em "Hoje em dia faz tudo tão mal/não comas carne, peixe ou vegetal/ porque nada faz bem" o que há de espantoso é aquele "nada faz bem" que, sabiamente, é o refrão. Uma frase sobre comida acaba, pela sua posição na canção, por tornar-se símbolo de algo maior. Talvez o mais bonito de tudo seja o pudor e a graça com que tocam em temas mais íntimos como fugir para o Porto porque em Lisboa nada está bem, ou ser uma rapariga que não consegue ter amigas. O truque está na distância entre o "swag", a pinta de rua que Maria tem e a candura infantil dos sentimentos. O que as separara do que veio antes é a secura e o humor: são imagens mínimas, desprovidas de pretensão e que se recusam a ser poéticas. Elas são, como dizem os americanos, in your face. A pele das palavras assenta-lhes: elas tornam o português fácil, dúctil, sintéctico.

É comovente ouvir uma miúda cantar "Eu sou merda mas gostas de mim", com em Pall-Mall. É bonito ouvir uma miúda cantar "Não tenho amigas/só amigos/ e a minha irmã", como em Homosec, a canção que fecha o disco. Podem parecer palavras simples, mas tocam numa ferida, a da identidade feminina que está prescrita às meninas. Aborde-se este assunto com as manas e é curioso ver como reagem. Júlia começa por dizer que "isso é uma coisa pessoal da Maria", e esta, a custo, confessa que sempre se deu "melhor com rapazes do que com raparigas".

Só que subitamente é como se a entrevista tivesse acabado e estivéssemos no quarto delas a assistir a uma conversa íntima:

Júlia - Mas tens amigas

Maria - Iá, mas não são amigas (com ligeira inflexão em "amigas").

Júlia - Tens a [segue-se uma lista de nomes de raparigas].

Maria - Sim.

E depois da pausa:

- Mas não tenho amigas.

A candura da conversa não disfarça o facto de, à primeira, Maria ser a mais seca das duas irmãs, aquela em que a atitude de desconfiança face aos estranhos se nota mais. Júlia entra na conversa com espontaneidade, gesticula mais. Está a estudar Biologia Celular e Molecular (entrou com média de 16), e quando mencionamos que as pessoas se referem à Cafetra como bando de putos suburbanos de famílias disfuncionais, ela - que vive com a irmã e os pais no Saldanha, centro de Lisboa - ri-se e diz que com elas "isso da família disfuncional não faz sentido".

Maria - que a malta da Cafetra trata por Mary, tal como trata por Jules a irmã - está "num ano sabático", dedicando-se exclusivamente à música. Pegou "pela primeira vez numa guitarra aos 13 anos". Começou "pelo cliché, Nirvana, Black Sabath, cenas assim", e depois deixou "de tentar imitar os outros". Hoje ficaria contente se conseguisse "tocar no Centro Cultural de Belém aos 26 anos" (como B Fachada no final do ano passado).

Só sei fazer isto/ não faço mais nada bem / (...)/ se isto não é música/ então faz tu uma canção/ e se eu desafino/ canta lá tu ó meu cabrão"

in Fetra

Há meia dúzia de anos ninguém acreditaria que uma dezena de putos estarolas, constantemente charrados, com um léxico por vezes incompreensível para quem está de fora e que gostam de fazer canções sobre velhinhos pedófilos que convidam as criancinhas para irem à sua carrinha (ver o projecto Smiley Face, da Cafetra) conseguiria editar três discos laudados pela crítica no intervalo de três ou quatro meses.

Mas foi isso que a Cafetra conseguiu. Em Dezembro, os Passos em Volta lançaram o disco de estreia, há umas semanas foi a vez dos Kimo Ameba, e agora chegam as Pega. Todos esses discos tiveram distribuição da Mbari Records, casa de Norberto Lobo e de B Fachada. As três bandas também passaram a ser agenciadas pela Filho Único, promotora de concertos da qual faz parte Nélson Gomes, músico dos Gala Drop.

Posto assim, pode até parecer que o estrelato está à espera, mas convém lembrar que músicos como Norberto, Fachada ou Gala Drop, por muito que produzam música admirável, não passam de figuras de culto no que toca ao PIB português.

Para alguns tudo mudou graças à Flor Caveira: como a editora de Samuel Úria, Tiago Guillul e Manuel Fúria, entre outros, era constituída por muitas pessoas que iam aos concertos umas das outras, a impressão que ficava era de os concertos serem concorridos. Além disso, os músicos da editora pareciam então sentir-se legitimados pela presença dos amigos - tal como os putos da Cafetra, hoje. Mas os putos da Cafetra não são pessoas mediaticamente interessantes, ninguém vai vê-los pelas suas declarações aos jornais.

"O que interessa aos média é cada vez mais o reality-show desbragado", diz B Fachada, que produziu o disco das Pega. "O que interessa aos músicos a sério é fazer música: isso geralmente reflecte-se na música que fazem."

Fachada parece não concordar com a ideia em voga de que os Cafetras são uma segunda vaga só possível graças à Flor Caveira, só que sem ideologia ou religião e com mais palavrões. "Não acho que a comparação à "vaga" Flor Caveira/Amor Fúria mereça mais do que meia dúzia de palavras, afinal estamos a falar de pessoas que estão mesmo interessadas em fazer música: já não é uma questão ideológica (será que alguma vez foi?) e muito menos de status. Ter uma banda não é mais fixe do que não ter: fixe é fazer-se mesmo bem aquilo que se faz. O disco das Pega Monstro é por si só já um fruto mais maduro, surpreendente e saboroso do que qualquer uma das falsas promessas que uma quase-vaga de quase-música quase-independente tenha feito nos últimos três anos."

Rui Portulez, radialista mais atreito às electrónicas (que constituem o grosso da programação da rádio Oxigénio, onde trabalha), e que é fã das moças, faz notar que o interesse ao redor das Pega Monstro está ligado a um "revivalismo dos anos 1990 que está em voga: elas recuperam cenas como os Dinosaur Jr e os My Bloody Valentine, que misturam com Phil Spector". E sim, é indiscutível que toda a editora bebe nessa época. No entanto, Portulez prefere realçar "a atitude positiva" que há na música delas, e que "não escapa às pessoas": "Em vez de se queixarem, cantam "Não quero virar lixo como os tios/não quero virar carocho" [em Carocho, a canção que abre o disco]. E têm razão: quem é que quer ser como o tio? Quem é que quer ser carocho?"

Ficas bem quando eu digo/ Eu já não quero ir ao cinema/ cheira a pipoca/ Ficas bem quando eu digo/ Eu já não quero ir à escola/ é sempre a mesma merda

in Akon

Os rumores à volta das Pega Monstro começaram há um ano, graças a duas canções saídas da mais nobre escola do garage-rock, Paredes de Coura e B Fachada, e desde o início as palavras que elas cantavam mexeram com os ouvintes. Mais do que acumular milhares de fãs de sopetão, os temas tiveram o condão de criar duas facções antagónicas que trocaram via net argumentos com alguma ferocidade: entre os que viam ali uma tremenda capacidade de criar riffs infecciosos, refrões com mel e um trato precioso da linguagem de rua usada para discursar sobre os temas mais mundanos, e os que viram ali uma anedota.

Os últimos ridocularizavam não tanto a peculiar tendência da Maria para volta e meia cantar ao lado, mas sobretudo as letras: em Paredes de Coura elas cantavam "Eu fui a um festival/comi tão pouco, fiquei mal/ apanhei uma infecção/ de tantos cagalhões no chão". E em B Fachada a Maria fazia uma carta de amor explícita ao novo bardo da música portuguesa: "Ó Bernardinho, tu de fachada não tens nada/ porque com essa barba/ eu fico toda molhada."

Só que as letras foram exactamente uma das razões pelas quais pessoas das mais diversas origens lhes prestaram atenção. É raro, em Portugal, haver raparigas a fazer canções em que a palavra "cagalhão" seja mencionada. Possivelmente é ainda mais raro havê-las a dizer que uma barba as faz ficar "todas molhadas". Mais raro do que tudo isto é os pais aprovarem: no final do concerto de sábado, na cave do Kolovrat 79, lá estavam eles a distribuir beijinhos pelas filhas.

O facto de andarem sempre rodeadas dos restantes moços da Cafetra também ajuda ao interesse à volta delas: raparigas que se movem entre rapazes chamam a atenção. Tanto que elas rapidamente se tornaram a banda mais falada da editora, e a mais requisitada. Júlia diz que já perdeu "a conta aos concertos da banda no último ano": "Foram mais de 20", atira, sendo que é simultaneamente bonito e ingénuo achar que 20 concertos é muito. O momento de viragem, em que a exposição se tornou maior, foi, segundo a Maria, a meio do ano passado, quando as "convidaram para o Festival Milhões de Festa [em Barcelos] e para uma festa da [revista] Vice". Ela não esconde que "surpreendeu bué, essa atenção".

Tenho uma afta na boca/eu já não como ananás/ tenho uma afta na boca/ como é que fui capaz?/ Tenho uma afta na boca e não sei de onde veio/ Tenho uma afta na boca/ deve ter sido do piteio"

in Afta

Desde o início que as irmãs estavam conscientes de estarem a ser faladas. A sua atitude perante o que ia sendo escrito é típica da nonchalance da malta da Cafetra. "Tipo, lemos essas cenas [negativas] na Net, mas não ligávamos muito a isso", explica Maria. "Normalmente quem dizia que cantávamos mal tinha gostos que não eram muito fixes", continua. A última frase amplia a ideia: "Prefiro os critérios dos meus amigos."

Os "amigos" e os "gostos" são da maior importância nestes contextos. Estão numa idade em que os gostos musicais fazem e desfazem amizades, numa idade em que as pessoas se movem em bandos. Os amigos a que Maria se refere são os 12 ou 13 elementos (conforme as versões) que compõem a editora Cafetra. Descrevem-se como um gang de hip-hop mas sem a violência, e vão juntos para todo o lado: para Paredes de Coura, de férias, aos concertos uns dos outros, à tasca na zona do Saldanha onde discutem o futuro da editora. Para se ter uma ideia de como levam a sério a Fetra (forma pela qual tratam a editora): as três bandas que lançaram discos fizeram (todas) uma versão de Fetra, o hino à editora escrito por Maria.

Os trunfos e as limitações das bandas da Cafetra jazem aliás no seu curioso modus operandi social: por um lado, apoiam-se mutuamente; por outro, são razoavelmente fechados ao mundo - o que aliás faz parte da cartilha de certo subgénero do rock. Este fechamento nota-se quando Sushi, o baterista dos Kimo Ameba, nos explica como é que a banda trabalha: "A música que fazemos é para nós. Fazemos as canções que queremos ouvir." Leio, um dos guitarristas, acrescenta que tinham formado a banda porque "tudo à volta era cagalhão". Como todos os putos que fizeram bandas e criaram editoras antes deles dizem que só queriam tocar. Lou, o vocalista, lá acrescenta: "E fazer um disco. A cena de ter um disco na mão."

Claro que tudo isto se passa num nicho e eles têm consciência disso. Se perguntarmos a Maria se já sentem alguma fama, ela atira de pronto: "Ontem tocámos no Plano B, no Porto, para 20 pessoas." Ainda assim, há ambição e muito trabalho ali. Maria não esconde estranhar "que as pessoas achem que as canções têm só dois acordes": "Não quero fazer fogo-de-artifício, mas tento que tenham mais do que isso, têm riffs e estruturas e linhas de voz cada vez mais trabalhadas".

E quando perguntamos a B Fachada qual o grau de trabalho que elas investiram nas canções, ele é seco mas explícito: "Acreditar em coincidências está no direito de todos", uma forma retentiva de dizer que sim, elas trabalham no duro.

Claro que elas não dão o braço a torcer nem adoptam aquele discurso americano de "o trabalho trará a glória". Quando perguntamos a Maria se põe a hipótese de viver só da música, ela espera um segundo e responde, quase sem emoção (parece que a reserva para o palco): "Se continuarmos a fazer música, pode ser que aconteça."

Era bom que continuassem a fazê-la. Porque há gajos que gostam de as ouvir abrir a boca.

Ver crítica de discos pág. 38 e segs.

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