Sem-abrigo como pontos de acesso à Internet: projecto solidário ou experiência degradante?

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Captação do vídeo de apresentação de Clarence, um dos sem-abrigo que fizeram parte do programa DR

“Chamo-me Clarence. Sou um ponto de acesso à Internet 4G.” A frase, estampada na t-shirt usada por Clarence e outros 12 sem-abrigo de Austin durante o festival de cinema, música e tecnologia South By Southwest, era um sinal para que todos os utilizadores de telemóveis, tablets e computadores portáteis que passeavam pelas ruas da cidade texana pudessem aceder à Web. A ideia começou por ter um objectivo solidário, mas explodiu na cara dos seus criadores. Afinal, usar pessoas sem-abrigo como pontos de acesso à Internet é um incentivo à integração, ou é pura e simples exploração?

O projecto da empresa de marketing BBH Labs terminou na passada segunda-feira e desde então tem ocupado um espaço considerável nos principais jornais norte-americanos, nas redes sociais, nos blogues e nas caixas de comentários um pouco por toda a Web.

Numa mensagem publicada a 6 de Março no site oficial, a empresa BBH Labs apresentava o projecto e não deixava margem para dúvidas sobre as suas intenções: “O festival SXSW é uma oportunidade de crescimento consistente para a nossa equipa. Mas este ano vamos também lançar uma inovação na área das acções de caridade”.

A descrição do projecto surgia logo abaixo: “Este ano, em Austin, enquanto andam de um lado para o outro a queixarem-se aos seus colegas sobre a fraca qualidade das vossas ligações e do facto de não conseguirem fazer downloads, transmissões em tempo real, usar o Instagram ou fazer ‘check-ins’, vão dar de caras com pessoas posicionadas estrategicamente e vestidas com uma t-shirt com a frase ‘Homeless Hotspots’. São pessoas sem-abrigo, que fazem parte do programa Case Management, da instituição Front Steps. Transportam aparelhos MiFi [routers que permitem acesso à Internet sem fios]. Apresentem-se a eles e liguem-se a uma rede 4G através dos vossos telefones ou tablets para conseguirem usar uma ligação rápida e de alta qualidade”.

As pessoas eram convidadas a pagar o que quisessem, “de preferência através do PayPal, para ser possível acompanhar as transacções”, sendo que todos os donativos iam directamente para os bolsos de Clarence e dos seus outros colegas ligados ao abrigo Front Steps. “Acreditamos que a prestação deste serviço digital vai dar mais dinheiro a ganhar a estas pessoas do que a venda de jornais e revistas em papel”, lê-se na mesma mensagem, numa referência a projectos semelhantes ao da revista CAIS em Portugal.

De ideia solidária a "demonstração grotesca de provocação inconsciente”

Apesar de o projecto ter sido apresentado no dia 6, a polémica só estalou no dia 11, num post no blogue de tecnologia ReadWriteWeb: “O South By Southwest de 2012 pode ser resumido desta forma: uma empresa de marketing com um nome impossível, chamada Bartle Boogle Hegarty, está a levar a cabo uma pequena experiência de ciências humanas denominada 'Homeless Hotspots'. Dão aparelhos de acesso à Internet a pessoas sem-abrigo, juntamente com uma t-shirt. Na t-shirt não está escrito ‘Eu tenho um ponto de acesso 4G’. Está escrito ‘Eu sou um ponto de acesso 4G’”.

A partir daqui, o jornalista Jon Mitchell, do ReadWrite Web, dá início à discussão que já chegou às páginas de jornais como o The New York Times: “Podem adivinhar o que acontece depois. Pagam o que quiserem a estes sem-abrigo, pontos de acesso humanos à Internet, e depois podem sentar-se ao lado deles a ver o email ou outras coisas do género. A exclusão digital nunca nos tinha atingido tão em cheio com uma demonstração tão grotesca de provocação inconsciente”.

Depois das críticas, a empresa de marketing BBH Labs veio lembrar que foi também por sua iniciativa que alguns sem-abrigo de Nova Iorque tiveram acesso a um telemóvel com ligação à Internet, no projecto Underheard in New York que, entre Janeiro de 2009 e Janeiro de 2010, permitiu, entre outras histórias, que um pai reencontrasse a filha que já não via há 11 anos, com a ajuda dos utilizadores do Twitter.

"Não há benefícios comerciais de qualquer espécie”

Clarence, um dos sem-abrigo escolhidos para fazerem parte deste “programa solidário” ou “experiência de ciências humanas”, conforme os pontos de vista, congratula-se com a ideia – que considera ser uma ajuda para as pessoas que se encontram nas suas condições – e a empresa BBH Labs defende-se com alguns pontos que considera terem sido mal-interpretados pelos críticos: "Não estamos a vender nada. Não há marcas envolvidas. Não há benefícios comerciais de qualquer espécie” e “Cada gestor de ponto de acesso à Internet fica com todo o dinheiro que conseguir ganhar. Quanto mais acessos vender, mais dinheiro ganha (o dinheiro não vai para um fundo conjunto para ser dividido)”.

Na mais recente mensagem publicada no site da empresa lê-se ainda que os criadores do programa concordam com uma das críticas – a de que, ao contrário, de projectos semelhantes ao da revista CAIS, os sem-abrigo apenas vendem acesso à Internet e não podem criar e disponibilizar os seus próprios conteúdos. Apesar disso, os responsáveis pelo “Homeless Hotspots” dizem que essa era uma das intenções iniciais, mas explicam que isso não foi possível porque os aparelhos de acesso à Internet utilizados pertencem a uma empresa externa, que não participou no projecto. “Contudo, gostaríamos de ver evoluções deste programa em que os pontos de acesso sejam propriedade das organizações de sem-abrigo e possam ser usados como plataformas para que eles criem os seus próprios conteúdos”, frisa a BBH Labs.

Ficam a faltar as contas: segundo os criadores do projecto, cada sem-abrigo ganhou, no mínimo, 50 dólares por dia (38 euros), por seis horas de trabalho, para além dos 20 dólares diários (15 euros) pagos pela empresa pelo facto de terem participado no programa e de donativos que ainda não estão contabilizados. Ainda de acordo com a BBH Labs, este programa foi acompanhado pelos responsáveis do abrigo Front Steps, que irá gerir o dinheiro no âmbito de um projecto que tem como objectivo ajudar os sem-abrigo a pouparem 2/3 do que ganham para tentarem entrar no mercado de trabalho e pagar uma renda para habitação.

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