O porto de refúgio do euro está a tornar-se tóxico?

Primeiro foi a compra de dívida pública. Agora os empréstimos a três anos a centenas de bancos europeus. O receio de que o BCE esteja a assumir riscos excessivos está a preocupar a Alemanha e a gerar divisões no banco central. Mais uma pedra no charco de uma crise sem fim à vista

Quando assumiu o leme do Banco Central Europeu (BCE), em Novembro, Mario Draghi trouxe consigo uma alcunha: "Super-Mario". Nestes quatro meses, conseguiu o que muitos já não acreditavam ser possível: acalmar novamente os mercados, atenuar a pressão sobre os grandes países periféricos, como a Espanha e a Itália, e dar tempo aos líderes europeus para resolverem o problema da Grécia. Os seus admiradores dizem que tirou a zona euro da beira do precipício. Os críticos contrapõem: o BCE assumiu demasiados riscos e está demasiado exposto. Afinal, nem o "Super-Mario" parece conseguir agradar a gregos e alemães.

Desde que rebentou a crise financeira internacional, há cinco anos, o balanço do banco central quase triplicou. Em Agosto de 2007, antes de anunciar o primeiro empréstimo extraordinário à banca europeia, o montante de activos detido pelo BCE superava ligeiramente os 1,15 milhões de milhões de euros. Agora, bastaram duas operações de refinanciamento de longo prazo (LTRO, na sigla em inglês) para a autoridade monetária engrossar o seu balanço com outro milhão de milhão. Juntando a isso os empréstimos de curto prazo, a dívida pública comprada no mercado secundário (e, claro, as reservas de ouro), os activos do banco central superam já a fasquia dos três milhões de milhões de euros e rivalizam com os dos outros grandes bancos centrais (ver gráfico)

Nas últimas semanas, as discussões em torno da intervenção do BCE subiram de tom, com os sinais de uma crescente divisão entre a instituição liderada por Mario Draghi e o banco central alemão, o Bundesbank. Para a Alemanha, a preocupação já não se fica pelo mais óbvio: que a constante injecção de dinheiro na economia gere inflação - o temido fantasma que assombra a maior economia europeia desde os anos 20, quando os alemães precisavam de um carrinho de mão cheio de dinheiro para comprar um pão.

Numa carta privada dirigida a Mario Draghi, o presidente do Bundesbank, Jens Weidmann, falou abertamente de algo impensável aos olhos do BCE - uma ruptura da zona euro - e do impacto que isso teria para os bancos centrais do Norte europeu, que estão excessivamente expostos aos do Sul. Quer isto dizer que o BCE está cheio de "lixo tóxico"? Que, se tornou, como escrevia a imprensa alemã já no ano passado, o bad bank da Europa?

A carta do Bundesbank

De acordo com os cálculos fornecidos pela Open Europe (um think-tank eurocéptico) ao PÚBLICO, a exposição do banco central aos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) atingiu, em Dezembro, os 705 mil milhões de euros, um aumento de 50% em relação ao Verão, decorrente da compra de dívida e do fornecimento de liquidez aos bancos.

Estes números ainda não têm em conta o impacto das duas grandes operações de refinanciamento, em Dezembro e em Fevereiro, através das quais o BCE emprestou cerca de um milhão de milhões a mais de 800 bancos europeus. No entanto, boa parte desses empréstimos foram também para bancos dos países periféricos, o que significa que a exposição do BCE aos PIIGS aumentou ainda mais.

Segundo Raoul Ruparel, economista da Open Europe, a alavancagem do banco central é 36 vezes superior ao valor do seu capital e reservas, o que significa que bastaria uma queda de 2,74% no valor dos activos para varrer a base de capital do BCE. Se, há algum tempo, esse risco parecia bem longínquo, o mesmo não se pode dizer agora. A Grécia acabou de negociar uma reestruturação da dívida - em que o banco central só não sofreu perdas porque trocou os títulos helénicos que detinha por novos títulos - e, para vários economistas, mais tarde ou mais cedo, o país terá mesmo de entrar em default (incumprimento) ou de sair do euro.

Para Raoul Ruparel, "a credibilidade e a independência do BCE está, em certa medida, em risco devido à sua enorme exposição à dívida soberana". Esta perspectiva tem sido partilhada por várias figuras alemãs e levou mesmo às saídas do BCE do ex-presidente do Bundesbank Axel Weber e do economista-chefe Jürgen Stark. Nas últimas semanas, o conflito subiu de tom numa carta do actual líder do Bundesbank a Draghi, que foi tornada pública por um jornal alemão.

Nesta missiva, Jens Weidmann mostrava-se preocupado com o facto de o BCE ter alargado o conjunto de colaterais (garantias) - geralmente títulos de dívida - aceites em troca dos empréstimos da instituição, isto depois de já ter aberto excepções ao aceitar dívida grega ou portuguesa com rating "lixo".

A agravar o cenário, o banco central permitiu que, a partir dos leilões de liquidez a três anos, os bancos de sete países (entre os quais Portugal) possam entregar como colateral activos de maior risco, como pacotes de créditos à habitação, créditos ao consumo e empréstimos a empresas não financeiras.

O presidente do Bundesbank avisou Draghi que "os bancos centrais da zona euro estão a asssumir riscos substanciais nos seus balanços, que estão no limite dos seus mandatos" e que podem desequilibrar ainda mais o chamado Target 2, o sistema de pagamento interno dos bancos centrais. O presidente do BCE respondeu à letra na última reunião mensal do conselho de governadores, dizendo que todos estão "no mesmo barco" e que não há nada a ganhar em lutar fora do conselho.

Até agora, quando um país precisava de financiamento estrangeiro, os seus bancos endividavam-se junto de outros bancos, no mercado interbancário. Contudo, a crise da dívida congelou este mercado e tornou os bancos quase totalmente dependentes dos empréstimos do eurosistema, ou seja, dos bancos centrais. Isto significa que, quando o Banco de Portugal empresta dinheiro aos bancos nacionais, fica devedor ao eurosistema e que outro banco central, como o alemão, fica credor. Estas relações financeiras entre bancos centrais são feitas através do Target 2.

Com a crescente dependência do financiamento junto do BCE, acentuaram-se os desequilíbrios: o Bundesbank tinha, no final de 2011, 500 mil milhões de euros em activos sobre o eurosistema. Um montante que não é problemático, enquanto o euro se mantiver intacto. Mas, se houver uma ruptura da moeda única, os bancos centrais do norte europeu ficariam com vários activos tóxicos - nomeadamente dívida dos países periféricos - nas mãos.

"Esta é uma das razões pela qual é do maior interesse dos bancos centrais manter a integridade da zona euro, o que inclui evitar uma saída da Grécia da moeda única", considera Nicolas Véron, economista do think-tank belga Bruegel.

A isso junta-se outra questão, que tem estado no âmago das preocupações da Alemanha sobre a política monetária do BCE: a inflação. Com a compra de dívida pública e com os empréstimos de longo prazo à banca europeia, a instituição liderada por Mario Draghi coloca mais dinheiro em circulação, o que pode vir a pressionar em alta os preços.

Mais intervenção?

Pouco depois de ter assumido a presidência do BCE e de ter jurado fidelidade ao princípio de manter a estabilidade de preços na zona euro, Mario Draghi anunciou duas descidas da taxa de juro de referência, voltando a colocá-la no mínimo histórico de 1%. Os riscos de recessão na zona euro - que deverá contrair 0,3% este ano, nas previsões de Bruxelas - fizeram o italiano pôr em segundo plano as preocupações com a inflação. Uma estratégia que continua a apoquentar a Alemanha e a gerar divisões no banco central.

"Será muito difícil ao BCE gerir a sua meta de inflação [2%] ao mesmo tempo que diminuiu o seu balanço e que assegura a estabilidade dos bancos da zona euro", considera Raoul Ruparel, que critica o BCE por ter implementado medidas não convencionais - como a compra de dívida e os empréstimos a três anos - sem ter nenhuma "estratégia de saída" preparada.

"O BCE expandiu significativamente o seu balanço, não há muito mais que possa fazer para combater a crise", defende Ruparel, dizendo que não é o banco central que pode resolver o problema na origem da crise - os desequilíbrios entre os Estados da zona euro. Além disso, avisa, se o banco central for mais além, arrisca-se não só a perder o apoio alemão, mas também a pôr em causa o apoio da maior economia europeia à zona euro como um todo, "algo que é preciso para o euro sobreviver a longo prazo".

Nem todos partilham, contudo, desta visão. "Neste momento, a política conduzida pelo BCE não parece trazer um risco de inflação significativo, pelo que, em princípio, [a instituição] poderia fazer mais", defende Nicolas Véron. O economista admite que há riscos, sobretudo de credibilidade, nas decisões que o banco central tem vindo a tomar, mas salienta que, "nas actuais condições da zona euro, não há uma orientação de política isenta de risco".

Para o economista belga Paul De Grauwe, o BCE também pode fazer muito mais do que está a fazer. O professor da Universidade Católica de Lovaina, que tem sido uma das vozes mais críticas da forma como o BCE tem conduzido a resposta à crise, escreveu recentemente um texto de opinião onde critica a tese de que a intervenção do banco central traga um "risco moral". Ou seja, que, se o BCE intervir, os Governos dos países endividados afrouxarão as reformas e a redução do défice e que os bancos assumirão mais riscos, abrindo caminho à próxima crise.

"Em momentos de crise, o banco central tem de escolher entre dois demónios. O primeiro é o colapso iminente do sistema bancário, o outro é um risco moral futuro. Um banco central responsável quererá sempre evitar o primeiro demónio", defende Paul De Grauwe. Para o economista, o BCE devia, desde o início da crise, ter assumido o papel de "credor de último recurso", comprando ilimitadamente dívida pública e impedindo que as taxas de juro dos países periféricos subissem acima de determinado patamar. Um papel que parece demasiado desafiador, até mesmo para o "Super-Mario".

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