Michael Kiwanuka é tão natural como a sua soul

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A última esperança da indústria da música é um cantor soul nostálgico de 24 anos que se diz inspirado em Otis Redding ou Marvin Gaye. Home Again, o seu álbum de estreia, agora lançado, promete dar que falar

Na véspera havia actuado perante uma plateia de anónimos, mas também de executivos da indústria e de jornalistas de toda a Europa. Nos últimos meses, o inglês Michael Kiwanuka, 24 anos, filho de pai e mãe ugandeses, transformou-se na mais recente esperança da música britânica. No dia seguinte, pela manhã, recuperado da noitada, nos escritórios de uma das últimas multinacionais da música, a Universal, apresenta-se tranquilo, imune ao ambiente de excitação à sua volta. "É óptimo poder contar com o suporte de uma editora como estas, mas também é importante para mim não ficar deslumbrado, porque há muito pouco tempo ninguém me conhecia de lado nenhum", diz, rindo-se.

O álbum de estreia, Home Again, é um misto de soul e folk, com paladar assumido a antiquado. Ou seja, o tipo de disco que se inspira na melhor soul e folk dos anos 60 e 70 - não só a música, e a qualidade sonora, mas também o tipo de imaginário. Olha-se para Michael e parece ter saído de um salão de baile dos anos 60. Ele ri-se com a sugestão: "Sim, é verdade que não é apenas alguma música antiga que me fascina, são também as roupas e as fotografias, mas é normal, porque para a minha geração acaba por ser qualquer coisa de novo. Talvez seja necessário recuperar uma certa essência e alguma dessa música tinha-a."

A música de que fala é a de Bob Dylan, Marvin Gaye ou Otis Redding. Curiosamente, como qualquer adolescente da era global, começou por desfrutar da música que os amigos ouviam. Coisas como Nirvana ou Radiohead. A soul e a folk só surgiram depois, aos 16 ou 17 anos. "Foi quando comecei a levar a música mais a sério. De repente comecei a ouvir Curtis Mayfield ou Al Green e a perceber que também podia tocar aquela música apenas com a minha guitarra."

Mais tarde haveria de estudar música num colégio, na esperança de se tornar professor de música ou, com alguma sorte, músico de sessão e colaborar com outros artistas. "Não tinha familiares músicos, não conhecia ninguém no mundo da música, não percebia como é que algum dia poderia aspirar a ser um cantor-compositor. Parecia-me um sonho muito difícil de concretizar." Mas o ano passado as coisas mudaram.

Começou por ser notado pelos espectáculos ao vivo, o habitat onde se sente à vontade. "Adoro a sensação de estar em palco e de sentir que o público está comigo. As canções que escrevo só estão completadas quando as consigo expor em palco. É aí que as coisas ganham sentido. Às vezes componho uma canção em estúdio e acho que vai funcionar bem em palco, mas acaba por ser outra a funcionar. Gosto dessa subjectividade. É em palco que acabamos por nos expressar totalmente."

Experiência ao vivo

Na véspera, o concerto na Islington Assembly Hall, deu-lhe razão. Sozinho, apenas com guitarra, ou com a sua banda completa em palco, Michael respira tranquilidade e espontaneidade. A sonoridade é calorosa e orgânica e a sua voz potente faz o resto. "Tenho consciência que hoje as pessoas querem a experiência ao vivo, querem sentir que as músicas fazem sentido em palco. Até podem ver um músico ao vivo no YouTube ou na net, mas estar lá é totalmente diferente", diz, sem deixar de enunciar que "quando se faz um disco suficientemente aliciante as pessoas continuam a querer comprá-lo."

É polido e solícito, mas por vezes sente-se que acaba por dizer aquilo que é suposto dizer. Só se entusiasma verdadeiramente quando o tema é a música de décadas passadas. "Ouvir Herbie Hancock faz-me querer fazer música o resto da minha vida. É tão bom! Tão bom! E Neil Young? Man! Que músico! E Marvin Gaye! Ouvir a música desses grandes artistas faz-me sentir vontade de criar qualquer coisa de semelhante!" Assumir as influências de forma tão apaixonada e descomplexada parece salutar, mas não faltarão imputações de que se limita a reescrever o passado. "Não reescrevo nada", defende-se, "recrio é o sentimento que tenho ao ouvir aquela música, é diferente."

Uma das principais dificuldades na feitura do disco prendeu-se com as letras das canções. "Nem sempre é fácil ouvirmos o nosso ritmo interior" diz, acrescentado que "não estava habituado a ser tão pessoal", como se as canções tivessem uma impressão autobiográfica o que, na verdade, não se pressente. As letras parecem bem mais universais, falando da procura de uma certa espiritualidade, qualquer coisa que está presente na tradição clássica da soul ou do jazz mais introspectivo.

"Não quero que isto se transforme no meu trabalho rotineiro, até porque para fazer sentido tem que ser qualquer coisa de visceral, que vem de dentro de mim." Aproveitando a deixa, perguntamos-lhe se encontra pontos de contacto entre as mortes de Amy Winehouse, Etta James e Whitney Houston. Pensa e diz: "a soul sempre teve essa coisa de mergulharmos em nós próprios. Às vezes pode ser bem sombrio. Whitney é outra coisa, mas Amy e Etta tinham um pouco disso, como se a música fosse um escape. É tramado, porque a música não resolve os nossos problemas. Elas cantam sobre coisas profundas e se não conseguimos lidar com algumas delas é tramado."

Trovadores pós-soul

Curiosamente o seu nome tem sido associado ao de Amy Winehouse, como se fizesse parte de uma nova vaga de trovadores pós-soul. Não é por acaso que, o ano passado, andou em digressão com aquela que toda a gente aponta como sua sucessora, Adele, fazendo as 1ª partes dos seus concertos. "Amy e Adele são diferentes, mas percebo que se possam fazer esse tipo de comparações", responde de forma diplomática.

"Pessoalmente, só posso agradecer a Adele, é alguém que consegue ter os pés assentes na terra, mas é também uma visionária. Foi generosa para comigo, ouviu uma ‘demo' e convidou-me para a acompanhar. Nunca tinha feito mais de dois concertos seguidos e, de repente, andar com ela permitiu-me ter a noção completa do que é isso de andar em digressão." Este ano vai fazer a sua primeira grande digressão a solo e a ideia assusta-o e fascina-o. "Gosto imenso de concertos e o facto de ser tudo tão novo para mim é entusiasmante, mas claro que vou entrar numa zona desconhecida e tenho que estar confiante."

Se o EP do ano passado (I'm getting ready) e o facto da BBC o ter destacado como uma das esperanças para este ano o deram a conhecer ao grande público, o álbum agora lançado permite um olhar mais completo sobre o seu trabalho e Michael parece consciente que a linha que separa a fama do falhanço é ténue. "Não sei como vai correr, ninguém sabe, mas estou confiante, não sou um artista de singles, por isso este álbum acaba por ser importante e todas as canções possuem o mesmo tipo de tonalidade sonora, para passarem essa ideia de unidade."

Mas não tem grandes razões para se preocupar. A sua voz atrai cada vez mais interesse. Na altura em que falámos com ele, tinha acabado de estar em estúdio com a dupla americana Black Keys. "O Dan [Auerbach] é um admirador da minha voz, tinha-me convidado há algum tempo para uma colaboração e isso acabou por suceder de forma natural." Os três encontraram-se nos estúdios de Ray Davies (Kinks) e gravaram numa tarde.

Michael di-lo sem excitação, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Talvez seja. Em tudo o que faz e diz existe naturalidade. E, claro, nostalgia. As capas dos discos podiam pertencer à Motown dos anos 70. Os vídeos possuem uma tonalidade sépia como se pudessem ter sido filmados há mais de trinta anos. E as roupas parecem ter sido compradas numa loja de 2ª mão de gosto requintado.

Não tem receio de ser acusado de calculismo? "Eu!?", e exalta-se pela primeira vez. "Até acredito que algumas pessoas possam dizer isso, mas depois ouvem a minha voz e veem-me em palco e percebem que estavam equivocadas." É bem capaz de ter razão.

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