Arpad Szenes e Vieira da Silva: um amor que estava escrito (e vamos ler)

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Arpad e Vieira no atelier do Boulevard Saint-Jacques, 1948 (à esq.)Crédito foto ao baixo: Willy Maywald/Au fil du temps

O museu de Lisboa que reúne a obra dos dois artistas vai editar pela primeira vez algumas das dezenas de cartas que trocaram nos 55 anos em que viveram juntos. O livro chega no Verão, eles conheceram-se no Inverno

Manhã clara no Jardim das Amoreiras. Da mesa da esplanada do quiosque, é fácil imaginá-los ali sentados a conversar ou a descer a rua abraçados, vindos da casa que tinham ao virar da esquina, no Alto de São Francisco.

Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes pareciam quase sempre um casal de namorados, mesmo quando ele estava no Rio de Janeiro e ela num navio a caminho de Dacar, mesmo quando ela passava temporadas em Lisboa a aborrecer- -se com conversas de sala depois do jantar e ele em Paris, entre amigos e telas na casa do Boulevard Saint- -Jacques e no atelier da Avenida Denfert-Rochereau.

Ler parte das dezenas de cartas que escreveram um ao outro durante os 55 anos em que viveram juntos é entrar na sua intimidade, perceber de que se ocupavam quando não estavam a pintar, o que os preocupava quando se separavam.

"Hoje, ao olhar as tuas fotografias, gostei tanto de me lembrar de nós no atelier a cozinhar. Eu abraçava- -te apaixonadamente e a fotografia ficou com o sabor da mousse de chocolate. Adorava ver-te mesmo de longe", escreve-lhe Arpad em Março de 1947, num período em que Vieira regressa a Paris e o pintor húngaro fica no Rio de Janeiro, transformando o atelier que partilhavam em Santa Tereza, bairro boémio de casario português e muitos artistas, na sua "gruta tropical".

Arpad interrompia o trabalho apenas para receber amigos, jogar xadrez e escrever à mulher - todos os dias -, explica Marina Bairrão Ruivo, directora do Museu Arpad Szenes- -Vieira da Silva e co-autora, com a documentalista Sandra Santos, da edição com a correspondência deste casal de artistas "apátridas" - Arpad era judeu e foi forçado ao exílio pela guerra; Vieira viu Salazar recusar-se a restituir-lhe a nacionalidade portuguesa em 1939. O livro deverá sair em Julho, integrado num programa de actividades que, devido aos cortes orçamentais na fundação com o mesmo nome, é este ano de "grande contenção" (ver texto ao lado).

Rotina diferente

Sobre a mesa de Sandra Santos estão várias cartas manuscritas, quase todas rasuradas - Vieira riscava mesmo quando escrevia a lápis. Muitas delas têm desenhos e algumas corações juvenis a meio das frases. No armário ao fundo da sala há mais de dez caixas com correspondência que a pintora recebeu de outros artistas, políticos, escritores e até da mãe, outro dos núcleos que as duas investigadoras gostariam de tratar.

"As cartas entre a Vieira e o Arpad quase não falam de pintura. O que ali vemos é a vida a acontecer, com pormenores rotineiros", diz Bairrão Ruivo. "Mas a rotina deles tem muitos intervenientes que fazem parte da arte e da literatura do século XX, portuguesas e não só, como o Almada [Negreiros], o [Eduardo] Viana, a [galerista Jeanne] Bucher, o [poeta Carlos] Drummond de Andrade... É esse dia-a-dia das coisas banais que nos permite ficar a conhecer melhor estes dois seres incríveis."

Não foi fácil tratar o espólio. Obrigou a um processo exaustivo de transcrição e tradução ainda não terminado. A cada momento é preciso tomar decisões, já que ambos escrevem em francês - idioma que não é a língua-mãe de nenhum deles - e muitas vezes cometem erros gramaticais e de construção que tornam difícil a compreensão. O livro, acrescenta a documentalista, obrigou também a um estudo das referências que as cartas fazem a pessoas, lugares e organizações. "Às vezes, um artista é mencionado por um diminutivo e não é óbvio a quem se refere."

Passaram já 20 anos da morte de Vieira (6 de Março de 1992) - Arpad morreu em 1985 - e a edição das cartas é nova oportunidade para "chegar mais perto" deste casal, que, sem abdicar das suas raízes, está artisticamente ligado à Escola de Paris.

Ainda sem título, o livro é também uma boa forma de promover o espólio documental de um museu que nos últimos anos tem sido notícia por causa do diferendo entre o Ministério da Cultura e os herdeiros de Jorge de Brito (1927-2006), o banqueiro que se tornou um dos maiores coleccionadores de Vieira.

A tensão entre os herdeiros e o Estado envolvia um moroso processo de classificação de 22 pinturas que Brito deixara em depósito no museu à data da sua criação, em 1994, e que impedia a sua venda no estrangeiro. A situação foi resolvida em Agosto do ano passado, depois de os herdeiros terem retirado do museu as obras que ali estavam em depósito. A Secretaria de Estado da Cultura decidiu, então, desistir da classificação, e os familiares do coleccionador aceitaram restituir seis pinturas ao museu até ao final de 2015.

Para manter estas obras, sem as quais o acervo do museu ficará fragilizado - é um dos núcleos mais importantes, com telas como Novembre e Au fur et à mesure -, o Estado ou a fundação terão de as comprar nos próximos quatro anos e meio.

Tédio em Lisboa

Os artistas conheceram-se em 1928, na Académie de la Grand Chaumière, em Paris. Arpad reparou em Vieira mal ela chegou, lê-se na fotobiografia Au fil du temps, publicada em 2008 pelo museu que reúne parte do espólio dos dois artistas em Lisboa. Ele tentou aproximar-se dela de imediato, apesar de dizer mal dos seus desenhos; ela começou por se afastar. Quando Arpad foi obrigado a regressar à Hungria, ficaram separados um ano, não sem que o pintor falasse aos amigos da "rapariga ibérica" que o deixara fascinado. Casaram-se em 1930 e foram viver para a Villa des Camélias, onde tinham outros artistas por vizinhos e as tertúlias se alongavam noite fora. Trabalhavam quase sempre juntos. Viajavam para ver a família e fazer exposições. E escreviam-se muito. "As cartas de Vieira parecem mais contidas", diz a directora do museu. "Embora terna, ela é angustiada." Arpad é luminoso e demora-se.

"Não abuses das tuas forças, tanto morais como físicas", escreve-lhe do Brasil, ainda em Março de 1947. Está preocupado com a saúde de Vieira e com o seu estado de espírito, agora que ela chegou a Paris: "Imagino que esteja muito frio. Em Inglaterra há tempestades de neve. E estas tempestades continuarão até ter notícias tuas. É a minha quarta carta, meu amor. (...) Escrevo na varanda enquanto ouço os biriris [pássaros] e olho o mar na direcção da Europa, pelo menos assim o imagino."

Quando está aborrecida com o ritmo de Lisboa, numa estada em 1950, Vieira da Silva envia-lhe uma carta em que revela emoções distintas: "Todos são gentis comigo, sobretudo porque eu sou uma pessoa gentil, mas não há nestas pessoas a mínima curiosidade, nem sequer psicológica." Mais à frente conta- -lhe que a tia Licas a levou a passear a Sintra no seu velho Rolls-Royce e que lhe tricotou um xaile, o que a deixou feliz. "Passei um dia inteiro a desenhar oliveiras", diz para mostrar ao marido que tem descansado e se diverte com as histórias dos amores de Vília, uma das suas primas preferidas, o que parece compensar os serões em que teme morrer de tédio.

"Às vezes pergunto-me por que diabo fui eu nascer neste lugar do mundo e, ao olhar para estes rostos tão pouco inspirados, duvido de mim mesma. Sou como eles? Não sou como eles? Comecei muitas aguarelas mas não acabei nada." E termina, depois de milhares de beijos e abraços para o seu "dragá Bichinha" - é assim que se tratam (drága, que aparece escrito de diferentes maneiras, quer dizer "querido/a" em húngaro), revelando um pouco da fragilidade emocional que, segundo Bairrão Ruivo, a caracterizava: "Estou triste sem ti, que me dás coragem e esperança."

Quando se referia a Arpad, mesmo depois da sua morte, Vieira da Silva falava por vezes da história extraordinária que tinham vivido. Tal como as fotografias, os desenhos e a pintura de ambos, as cartas fazem parte dela. Uma história com frases destas: "Pensa um pouco em mim, mas calmamente, porque se tu estiveres calma eu estarei também."

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